sábado, 9 de abril de 2016

Rio Branco


* Por Constâncio Alves


Todos esses dias que passaram se coloriram no crepúsculo final da vida de Rio Branco.

Não houve alma que não se embebesse da tristeza e da solenidade desse lento e majestoso anoitecer.

Às mais fechadas aos sentimentos coletivos chegou sempre um raio dessa luz violácea que encheu o horizonte inteiro, transpôs as montanhas desta Capital, purpurou todo o céu da pátria que ele engrandeceu, e foi levar a inquietação e a angustia a muitos corações além das fronteiras a que ele traçara a linha definitiva.

Sob essa claridade dolorosa fraternizaram pessoas de todas as classes, almas de todas as feições, espíritos de todas as culturas.

Até onde a vista alcançava, víamos prolongar-se numa imponente amplitude o sentimento público acompanhando com ansiedade e carinho as alternativas daquele fim de existência.

Do estrangeiro nos vinham, num longínquo murmúrio de vozes amigas, a certeza de que o nosso pesar não tinha as delimitações de uma amargura doméstica.

De todo o Brasil chegavam ininterrompidamente, em perguntas inquietas, na indicação de numerosos remédios salvadores, em preces e lágrimas, as mais profundas manifestações de piedoso interesse.

Nesta vasta cidade, até os confins indecisos dos seus subúrbios, estendia-se um sombrio compungimento que perturbava toda a nossa atividade.

E quando as apreensões e as esperanças emudeceram ante a realidade da morte, essa mágoa que procurava se distrair dos seus receios, e enganar os seus pressentimentos - avivou-se na mais pungente dor com que a alma de um povo já chorou a morte de um homem.

As expressões desse sentimento se desenrolaram em espetáculos de uma grandeza inenarrável.

Foi o silencioso passar da cidade numa romaria comovedora, diante do caixão mortuário.

O que guiava a multidão infindável não era a curiosidade, que vê com olhos enxutos a morte em grande gala no aparato de seus veludos e na refulgência dos seus ouros; era o amor, que em lances desses quase que só tem olhos para as lágrimas, e tateia as faces do morto com dedos que tremem de ternura materna.

E quando o grande Brasileiro seguiu para a derradeira morada, foi todo o povo que o levou numa dessas marés irresistíveis que mudam os préstitos fúnebres em cortejos triunfais.

Além das massas que se premiam e até nas ruas mais largas, ofereciam resistência de correnteza impetuosa, à angústia de canais apertados, além desses milhares de pessoas que a perder de vista - alastravam praças - sentia-se que o préstito continuava por uma multidão invisível, por um acompanhamento inumerável de almas que de todos os pontos do Brasil, tão amado pelo morto, vinham seguindo aquele féretro glorioso.

Tamanha era a magnificência da cerimônia que ela perdia, por vezes, a sua nota de dor.

Em vão as lâmpadas, filtrando a sua luz aflita através de véus negros, e o sol, também envolto numa névoa de luto, diziam da significação daquela homenagem. Predominado a melancolia dessas manchas luminosas, que falavam de ruína e de acabamento, um clarão de imortalidade dominava toda aquela torrente humana, e comunicava esperanças de primavera às flores das coroas funerárias.

Onde, porém, a tristeza se exprimiu com a sua eloqüência acabrunhadora, foi nos pontos da cidade, que deram para a glorificação de Rio Branco tudo quanto lhes dá animação e graça: foi nos jardins, sem flores, e nas ruas sem transeuntes.

No centro da cidade, nos bairros do comércio, justamente nos locais de maior movimento, as casas fechadas e as ruas ermas, inquietavam e afligiam pelo seu silêncio trágico. O estrangeiro que visitasse esses trechos urbanos, ignorando a causa de tamanha mudez, julgar-se-ia numa cidade morta, experimentaria o terror do mistério, e adivinharia a sombra de uma catástrofe.

Rumorosas ou mudas, essas demonstrações de tristeza, de respeito e de admiração - mostram a fidelidade do sentimento nacional àquele a quem, há mais de dez anos, recebera com manifestações a que uma vibração de ternura se misturava o mais clamoroso entusiasmo.

Quem esteve nos dois cortejos, reconhece que o mesmo amor palpitava nas festas com que acolhemos Rio Branco, e no adeus que lhe dissemos agora.

A popularidade que alcançara, pelos seus triunfos diplomáticos, em Berna e em Washington, - não deixou de acompanhá-lo afetuosamente nos seus últimos anos de trabalhos e de glória.

A constância dessa fascinação era de toda a justiça, porque Rio Branco nunca deixou de ser o que sempre foi para o povo: o herói, agigantado pelo amor da pátria, que incansavelmente batalhava e infalivelmente vencia, em defesa da nossa honra, e no interesse da nossa grandeza. Se o povo, que tanto o idolatrava, tivesse que enumerar minuciosamente os motivos de sua idolatria, - naturalmente não chegaria com as suas razões ao nível de sua admiração.

Ele não sabe precisamente que dificuldades venceu e que limites fixou o grande homem; e ignora todo o alcance de sua obra diplomática, a feição característica de sua fisionomia de estadista.

Rio Branco aparece-lhe numa névoa luminosa, a da lenda, que a certos respeitos, é da verdadeira glória.

O povo tem a visão confusa, e no entanto exata, de que esse homem possuía as qualidades necessárias para realização das grandes obras que escravizam o reconhecimento nacional e que essas qualidades superiores, ele as empregou em monumentos imperecíveis.

E o povo o amava, o ama, porque sente que havia entre a sua alma humilde e a alma radiosa do seu super-homem um sentimento comum que, apesar de todas as distâncias, as irmanava: o amor da pátria.

Sem dessa convicção tirar vanglória, quantos dos que beijaram a pálida mão que apertava a crucifixo não tiveram a noção dessa conformidade de afetos, pensando que aquela mão agora inerte, depois de tantos labores, afirmara com a pena o mesmo devotamento que mãos anônimas da plebe podem afirmar com as armas, e com a ferramenta do operário.

Louvando merecidamente o patriota, por que toda a vida de Rio Branco foi orientada pelo patriotismo - o sentimento popular glorificou propriamente o estadista, o diplomata, o homem que, numa evidência de batalhas e de vitórias, engrandeceu o seu nome e o nosso.

É esse realmente o Rio Branco que se destaca por uma superioridade inconfundível, e que recebe outras homenagens além das que lhe prestamos.

Foi com efeito à luz de seus triunfos, de representante de nossos direitos perante árbitros, e de Ministro de Estrangeiros, que a sua individualidade se mostrou com o seu prestígio inapagável aos olhos do país e do mundo.

Mas, seria mutilar a sua personalidade, e dar de sua vida alguns capítulos apenas, ver em Rio Branco simplesmente o homem desses últimos anos de notoriedade fulgurante.

Embora seja o resplendor dessa última fase o que lhe dá direito de viver além da morte não merece esquecimento esse Rio Branco que longos anos viveu longe da pátria, na penumbra de seu gabinete de erudito, de cronista, de historiador das coisas pátrias.

E necessário é bem lembrar esse Rio Branco, porque sem ele o outro talvez não existisse.

Foi o Rio Branco que nos vagares de suas pesquisas bibliográficas ia colhendo nas casas e caixas de antiquários velhos volumes que falavam do Brasil; foi o Rio Branco paciente e infatigável remexedor de arquivos e bibliotecas estrangeiras que armou o Rio Branco de agora para as batalhas que o imortalizaram.

Não podemos, não devemos esquecer esse beneditino que, certamente ignorante do que o Destino lhe reservava, ia lendo velhas crônicas, estudando cartas amarelecidas e obscuras, classificando na sua maravilhosa retentiva memórias do nosso passado.

Já nesse tempo o animava o sentimento que o tornou um grande vulto da história que ele estudava com tanto amor. Já então, no seu ex-libris em que se vê desenhado um trecho da nossa maravilhosa baía, e no seu papel de cartas figurava a legenda que era o resumo de sua vida: "ubique patriæ memorn".

Nunca uma divisa exprimiu melhor um homem. .

Rio Branco era historiador, era geógrafo, porque as crônicas e os mapas lhe falavam da pátria.

Os seus estudos obedeciam antes ao amor de cidadão do que à curiosidade de estudioso. E não era somente o culto desenganado e pessimista de um homem que do seu país ama somente o passado, o que jaz amortalhado em anais, e glorificado em pedras arqueológicas.

O seu carinho de filho enternecido e orgulhoso, tinha um campo de visão amplíssimo. Ele envolvia nessa afeição o Brasil desde o dia do descobrimento até o mais recente de sua existência. Amava-o nos seus homens e na sua natureza, e do seu amor dava a prova mais intensa, estudando, não num exame que abrangesse apenas as massas, isto é, multidões e florestas, mas numa análise que descia a minudências biográficas: às plantas mais rasteiras, aos personagens mais obscuros, aos regatos ignorados, que correm em vales sem nome, aos fatos miúdos que só miúdas memórias registram.

Desse estudo que o amor inspirava, resultaram os feitos que hoje admiramos. Ele saiu da penumbra para a glória, como um rio que depois de um curso subterrâneo, inesperadamente desenrolasse à luz do sol uma corrente já majestosa. Mas nos dois lances do seu caminho, embora em terrenos diversos, é a mesma linfa que corre. Por ter a pátria sempre na lembrança Rio Branco pôde passar dos labores da crônica à situação de dar a futuros historiadores, do Brasil e da América, espetáculo de uma nobre figura, dessas de quem se pode dizer, com um escritor, que pertencem ao passado pela historia e ao futuro pela imortalidade.

15 de fevereiro de 1912.

(Figuras, 1921).



* Jornalista, ensaísta e orador, membro da Academia Brasileira de Letras.

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