Mercado da Boa Vista
* Por
Urariano Mota
Do Dicionário Amoroso
do Recife, copio o trecho a seguir.
Todos os dias são de
sol no Mercado da Boa Vista, Não consigo imaginar um minuto sequer de tempo
sombrio, de inverno pesado, de toró brabo ou de noite soturna, lá no Mercado da
Boa Vista. Mas antes que me acusem de não possuir nem um pinguinho de
imaginação, ou de ser mentiroso pelo abuso de muito imaginar, explico.
Todas as vezes em que
fui ao Mercado da Boa Vista sempre estava um dia cheio de luz. Numa das vezes,
lembro, houve uma chuva passageira em plena tarde. Mas sabem aquela chuva com
sol, que a gente nem reclama porque se casa a raposa com o rouxinol? Pois, ela
veio, passou e o clima ficou mais verde. Foi a única vez de chuva. É claro que
aqui, mais uma vez, o sentimento é que faz a conformação do tempo. A forma das
coisas é o que a memória manda ver.
A razão psicológica
para tal iluminação de boas-vindas, primeiro nos atinge pela forma exterior, na
grande porta do mercado. Numa rua tão histórica e reconhecida, por uma
experiência anterior à nossa chegada, na Rua de Santa Cruz somos recebidos
pelos arcos do Mercado. Com a vista do maior deles, no centro, entramos para o
pátio interno. É outra saudação, com as árvores frondosas no pátio. Então somos
atingidos por uma doce pancada de infância.
De onde vem isso, por quê? Será do arco, será do sol no arco, será da
vista? Agora sei, será dos boxes antigos que vendem de tudo, com os cheiros
conhecidos de queijo de coalho, de manteiga, de coentro e cominho e rapadura,
mais as suas caras conhecidíssimas, como existia lá atrás no Mercado de Água
Fria? É isso, deve ser isso, descobri agora de onde vem essa permanente luz do
Mercado da Boa Vista.
É por isso que os sóis
no Mercado da Boa Vista nos chegam em clarões. Não como naqueles dois sóis de
João Cabral de Melo Neto, nos versos:
“O
sol de Pernambuco leva dois sóis,
sol
de dois canos, de tiro repetido;
o
primeiro dos dois, o fuzil de fogo,
incendeia
a terra: tiro de inimigo”
Não nesse sentido. No
mercado os inimigos, se existem, estão perdidos na multidão de todos os
sábados. Ou então fazem momentânea trégua, bandeira branca porque o dia não é
de guerra. Os clarões vêm, depois dos arcos e dos cheiros, de outra realidade
humana. Mas que outra? Digo melhor, vêm da continuação da humanidade da
recepção desde os arcos, porque no pátio encontramos gente, muita gente, diria
melhor, gentes de todas as classes sociais, idades e tribos. Dos chamados
intelectuais, queremos dizer, das pessoas que gostam de ler e cultivar o
espírito, no mesmo passo em que amam a carne, aos que nada leem de livro
impresso, mas têm a leitura da vida no Recife. Ali se misturam as moças das
famílias emergentes da zona sul, às belas suburbanas da zona norte, os amantes
do frevo e do samba, os poetas estabelecidos e marginais, até mesmo um
dicionarista sem classificação que ora escreve. No Recife, quem gosta de povo,
de gente pernambucana e de juventude, vai ao Mercado da Boa Vista.
*
Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da
redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações
Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici, “Soledad no Recife”, “O filho
renegado de Deus” e “Dicionário amoroso de Recife”. Tem inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao
ensino em colégios brasileiros.
Eu adoro um mercado, seu povo, seus cheiros e gostos.
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