Menção a epidemia na Ilíada de Homero
As epidemias – e não importa de que doenças – integram o imaginário
popular desde épocas remotíssimas e imemoriais. Sempre se fizeram presentes
desde que o primeiro homem talentoso, sobretudo criativo (que ninguém sabe e
jamais saberá quem foi) expressou suas impressões sobre o mundo, sobre as
pessoas, sobre o concreto e o abstrato e, principalmente, sobre o que pensava
ou sentia. Por paradoxal que pareça (e que, de fato, seja) a “criação literária”
nasceu “ágrafa”. Ou seja, precedeu, e em muito (possivelmente num par de
milênios) a invenção da escrita. “Mas como?!”, indagará, atônito, o leitor,
diante dessa aparente contradição. Explico.
A primeira manifestação literária da humanidade foi a poesia e necessariamente rimada e
ritmada, para facilitar a memorização. E também repetitiva. Originalmente, esse
hoje tão nobre gênero de Literatura tinha função muito diferente da de hoje.
Era mais abrangente. Era a única forma
de uma geração passar para outra conhecimentos, experiências, descobertas e
inquietações. Algumas vezes fazia o papel que cabe atualmente ao jornalismo,
transmitindo notícias, passadas de boca em boca. As composições eram “decoradas”
pelos jovens que, tão logo amadureciam, transmitiam o que haviam decorado aos
seus filhos e estes aos seus e assim sucessivamente, mantendo vivas as experiências
e a história das comunidades. Muitas dessas comunicações (embora nem se
desconfie quantas e quais) foram, mais tarde, perpetuadas em textos, claro,
após a invenção e consolidação da escrita.
Não é preciso ser nenhum gênio para concluir que entre a
concepção original do que se transmitia e sua “versão” final após um par de
anos, havia diferenças de anos-luz de tamanho. Afinal, a idéia de que “quem
conta um conto, aumenta um ponto”, sempre, sempre e sempre prevaleceu (e ainda
prevalece, mesmo com os recursos da escrita de que dispomos). Uma das primeiras
menções literárias a uma epidemia (possivelmente de peste bubônica), foi feita
pelo poeta épico da Grécia Antiga Homero. Foi logo no Canto I, o introdutório,
de sua ultra conhecida e hiper divulgada epopéia “Ilíada”. Esses versos da
composição citada começam com uma epidemia de peste, enviada por Apolo, sobre o
exército de Agamenon em represália por ele haver raptado a filha de um de seus
sacerdotes.
Homero escreve, no Canto I da “Ilíada”:
“Canta-me, ó deusa, do Peleio Aquiles
A ira tenaz, que, lutuosa aos Gregos,
Verdes no Orço lançou mil fortes almas,
Corpos de heróis a cães e abutres
pasto:
Lei foi de Jove, em rixa ao discordarem
O de homens chefe e o Mírmidon divino.
Nume há que os malquistasse?
o que o Supremo leve em Latona.
Infenso um LETAL MORBO
No campo ateia; o povo perecia,
Só porque o rei desacatara a Crises.
Com ricos dons remir viera a filha
Aos alados baixéis, nas mãos o cetro
E a do certeiro Apolo ínfula sacra.
Ora e aos irmãos potentes mais se
humilha:
‘Atridas, vós Aqueus de fina greva,
Raso o muro Priâmeo, assim regresso
Vos dêem feliz do Olimpo os moradores!
Peço a minha Criseida, eis seu resgate;
Reverentes à prole do Tonante,
Ao Longe-vibrador, soltai-me a filha’"
É certo que estes versos pecam por falta de clareza. Cético
que sou (suponho que na medida certa do ceticismo que devemos cultivar), não
creio que o mítico poeta tenha se expressado exatamente assim. Afinal, passaram-se
séculos desde quando ele compôs sua genial epopéia, em época em que não havia
escrita, transmitida, portanto, oralmente, de geração a geração, até que um
primeiro escriba (que não se sabe quem foi), a registrou, e em uma linguagem
desconhecida para nós, leitores do século XXI depois de Cristo.
Esse poema, portanto, teve inúmeras traduções de traduções
de traduções de traduções etc.etc.etc., sabe-se lá quantas, mas certamente
muitas. E certamente cada tradutor modificou, conforme seu entendimento, palavras
(muitas palavras), aqui, ali e acolá, Ou será que o leitor é ingênuo de
acreditar que a versão que chegou até nós é rigorosamente a que Homero
escreveu? Ora, ora, ora... Claro que não é. O importante, para o assunto que estamos
tratando, é que o poeta mencionou uma epidemia (provavelmente de peste). E que
essa menção é a mais antiga, da doença, em Literatura. Pelo menos desconheço outra
que a supere em antiguidade.
Sobre Homero há muito que se comentar e refletir. Enquanto
muitos acreditem, como os gregos antigos acreditavam, que o poeta de fato
existiu, que era, portanto, um indivíduo histórico, inúmeros estudiosos
contemporâneos são céticos quanto à sua “existência física”. Acreditam que os
poemas a ele atribuídos foram compostos por centenas de pessoas anônimas e que
são a culminância de muitos séculos de histórias narradas oralmente. Um desses
especialistas é o professor Martin West, que escreveu: "Homero não é o
nome de um poeta histórico, mas um nome fictício ou construído". O
historiador e filósofo Richard Tarnas pensa mais ou menos igual. Declarou: “Homero
- independentemente da polêmica sobre sua existência histórica – foi uma
personificação coletiva de toda a memória grega antiga”. Será?!!! Por pura
intuição, sem nenhuma prova concreta da real existência do poeta cego, discordo
dos dois especialistas. Mas... tratarei disso, com mais vagar, em outra
ocasião.
Boa leitura.
O Editor.
Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk
Eu não entendo exatamente nada do poema citado.
ResponderExcluir