sexta-feira, 10 de abril de 2015

Leon Hirszman e o cinema brasileiro


* Por Urariano Mota.


Leon Hirszman é um caso de cineasta que vai além do cinema. Aquilo que Noel Rosa cantou no samba “Não Tem Tradução”, nos versos

“…Essa gente hoje em dia que tem a mania da exibição
Não entende que o samba não tem tradução no idioma francês
Tudo aquilo que o malandro pronuncia
Com voz macia é brasileiro, já passou de português”

bem que se pode aplicar ao que penso de Leon Hirszman. Parodiando Noel, dizemos que o trabalho de Leon já passou de cinema. Mas pode ter alguma tradução, que tentarei em três curtos parágrafos.

Ontem à noite, ao ver no Arte 1 dois documentários seus, eu fiquei com os olhos rasos d’água e o coração em estado de encantamento. A imagem com que ele abre o documentário Nelson Cavaquinho, com a cara de mestiço de índio e negro de Nelson, o modo respeitoso e sério e original e único com que vai para o quarto miserável, vizinho do quarto onde dorme o compositor, na casinha pobre de Nelson. O modo como o filma caminhando entre os vizinhos da ruazinha de vila, a honestidade com que filma o gênio de Luz Negra, do compositor de “respeite a minha dor, não cante agora, perdi meu grande amor faz uma hora”, o modo como exibe a voz embargada de Nelson Cavaquinho bêbado, ou zangado, ou sincero e verdadeiro no samba em que canta não se deve negar uma ajuda a quem necessita, eu nunca vi nada igual em toda a minha vida. Esse respeito à integridade de um compositor popular, a originalidade de imagem, da verdade na entrevista que arranca de Nelson a confissão “o samba vem da minha vida, todo o meu samba é triste,” a montagem dos vários e único Nelson Cavaquinho é tão boa, que quando acaba, recebemos um soco no estômago, de raiva: – “Acabou?! Não pode”. Assim pensamos porque ao acabar o documentário parece ter acabado também o momento mágico de ter Nelson Cavaquinho na sala, sob o alcance das mãos, dos olhos de uma grande fraternidade.

Depois, ao ver o Partido Alto, em que Paulinho da Viola o auxilia, e vemos crescer a voz e a pessoa de Candeia, que puxa o samba com uma voz que liberta e sem querer nos move no ritmo como se nos tomasse um canto de terreiro, no sofá, e vai mais longe, vai mais fundo, com as 3 mulatas que mais parecem as 3 mulheres do sabonete Araxá de Manuel Bandeira, e vai até um clímax, quando já de noite, uma roda de samba, com a negrada toda embriagada a cantar, a negrada que somos todos nós, “eu sou eles, eu sou eles”, a vontade que dá é de pular para dentro da imagem, e começar a improvisar também no partido alto, naquela alegria alucinada que o encontro da música favorece, e quem o provou alguma vez sabe que é ótimo e nunca mais se esquece. Isso porque nessa altura Leon Hirszman filma dentro da roda de partideiros, pois a câmera também canta como mais um dos sambistas, e até a imagem escura na noite, a precariedade da luz é boa e sincera, só falta a gente gritar “não acende a luz”, porque se acenderem vão me ver gritando de felicidade.

Então ao acabar esses dois documentários eu comentei com a minha mulher, no último domingo: esse era um cineasta que amava o povo brasileiro. Esse é o cinema que nenhum cineasta brasileiro hoje faz. O trabalho de Leon Hirszman não é uma filmagem exterior, de teoria do bar com a patota, ou sobre o mundo do lúmpen como a classe média imagina que seja o lúmpen.

* Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici, “Soledad no Recife”, “O filho renegado de Deus” e “Dicionário amoroso de Recife”.  Tem inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao ensino em colégios brasileiros.



Um comentário:

  1. Vontade de tudo: de Nelson Cavaquinho, Paulinho de Viola e de Leon Hirszman.

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