quarta-feira, 22 de abril de 2015

A picada dolorida de Lou Reed


* Por Ademir Assunção


Ele estava realmente em apuros. Pisando fundo demais no acelerador. Voltar atrás, usar o freio? Ainda não. Quando você é um outsider puro-sangue, o Corvo de Poe não é uma esfinge tão assustadora — diziam suas canções, naquela voz de quem acabou de cometer um crime passional. Apenas um personagem durão do romance noir adaptado a seca turbulência da juventude urbana? Engano seu. Aqueles versos eram mesmo reais. Se fossem somente figuras de linguagem, assim mesmo seriam suficientes para causar sérios curto-circuitos nas engrenagens do sonho americano de prosperidade. Mas se nenhum calafrio percorreu sua nuca quando você ouviu "The Kids", esquece, tudo bem, há pouco a dizer. Ouça, baby. Listen to my heartbeat no meio dessa fuselagem paranóica. Esse é um poema escrito com adrenalina nas veias do cérebro.

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Você pode imaginar o tremendo susto: um cara de blusão negro usando a emergente linguagem do rock'n'roll numa atrevidíssima declaração de amor à euforia das picadas. "Heroin is my wife and is my life" (Heroína é minha mina e minha vida). Se a elétrica pulsação do rock já era suficiente para encher de grilos a cabeça da próspera potência do novo mundo, o mergulho de Lou Reed nos becos selvagens da barra pesada aterrorizaram até os arcanjos da nova cultura industrial. Um espelho negro dos excluídos, com ferimentos graves na própria arquitetura pop. Não foi somente a crônica do submundo que o transformou num obelisco.

"Minhas ambições são um pouco maiores do que se diz por aí. Eu quero ser o maior escritor da Terra, alguma coisa como Dostoievski, Shakespeare... eu quero fazer no rock alguma coisa do nível de Os Irmãos Karamazov, por exemplo" (Lou Reed, no lançamento do álbum The Bells, 1979).
       
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As letras, a colocação de vozes, os arranjos esquizóides em seus discos remexem nos ossos da linguagem, abrem as porteiras da experimentação. Os primeiros elepês do Velvet Underground — The Velvet Underground and Nico e White Light/White Heat — levam em conta as ousadias de Marcel Duchamp & Ornette Colleman & John Cage & música eletroacústica. John Cale se ligou cedo nas experiências mais radicais do século 20. Muitas das surpreendentes inovações musicais do Velvet devem-se a ele. Com Reed, os dois souberam provocar transformações estéticas de alta voltagem.

Zumbido sutil de guitarras, a bateria saindo pelo outro lado, ruídos vocais, um curinga com timbre impessoal comentando o bárbaro roteiro de "Lady Godiva's Operation". Violinos e orquestração psicótica em "Winter Song". A voz de Nico como um canto de sereia underground-renascentista em "Wrap your troubles in dreams". O melancólico distanciamento de "Eulogy to Legny Bruce", camuflado em cordas picotadas. Cruzamento de vozes, narrações simultâneas, discursos diferentes, o texto sussurrado como uma homilía, riffs de piano, base minimal em "The Murder Mistery". O Velvet barbarizou quando o rock ainda engatinhava. Ariscos, arriscaram brilhantes experiências. Jamais foram tão populares quanto Jesus Cristo.

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Mas por que tanta ênfase nessa rebelião estética? Simples: de Lou Reed sempre falam sobre o wild side de sua poesia. Ele fez mais: assumiu a rebeldia do rock em todos os sentidos, inclusive na estrutura musical. Agrediu o ouvido até dos mais fanáticos roqueiros com o álbum duplo Metal Machine Music — uma cotovelada nos tímpanos, ruído levado às últimas conseqüências. Nos dois elepês uma parafernália de guitarras distorcidas tece um ruidoso inferno. Levou seis anos para ser gravado. Teve alto índice de devolução. Os fãs chiaram. Grande parte dos caras que recusaram aquele radicalismo estava mais interessada em assistir Lou Reed empacotar no palco, depois de empurrar goela afora os últimos versos de "Heroin".

"Antes do Metal ser lançado todo mundo perguntava: ‘Quando é que você vai fazer um solo de guitarra?’ Eu pensava: porra, que chato! Mas agüenta aí. Para aqueles que queriam ouvir um solo de guitarra fiz Metal Machine Music. Foi quase um suicídio."

É aquela velha historinha: aquilo que o público vaia, cultive-o, é você. Lou Reed estava querendo novos desafios para abrir novas cicatrizes no rock'n'roll.

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Desde os remotos tempos da poesia falada, poetas fizeram galhos estalar, madonas desnudarem-se e lebres desafiarem búfalos em seus versos. Reed injetou selvageria nas estruturas conflitantes da vertigem industrial. Poucos desceram tão fundo no redemoinho das metrópoles pré-século 21. O anticanto de "Walk on the Wild Side", a auto-imolação cruel em "The Kids", a agonia dopada de "Waiting for the man", sem contar a extenuante desolação de "Heroin", são convites para desviar o foco e encarar de frente o sombrio espetáculo humano dos fodidos e desgarrados. Nem vem dizendo que você não tem nada com isso, brother! — intima, descaradamente, sua poesia.

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Não se trata de piedade, ora vamos. Ele jamais choramingou pelos cantos. Talvez por isso seja tão difícil tirar da cabeça aquela voz soltando em trancos melancólicos sua desolação, cuspindo raiva com solos sutis, tropeçando nas botas de Negros Sargentos que não se chamam Peppers. E aquele sax ondulante, chamando, seduzindo, quase te levando para o lado selvagem da cidade.


* Poeta e jornalista

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