sexta-feira, 17 de abril de 2015

Congresso terceirizado não vale um biscoito Mabel


* Por Urariano Mota


Sobre o projeto de lei 4330/2004, da traiçoeira terceirização, votado pela Câmara do Deputados, pretendo falar das notícias na imprensa  à luz da  minha própria experiência. 

Antes, uma breve informação sobre o original autor do projeto. A grande ideia foi do ex-deputado federal Sandro Mabel, de Goiás, assim chamado, Mabel, em razão da sua grande indústria de biscoitos Mabel, uma das maiores de toda América Latina. Falam que a Mabel já foi terceirizada para um grupo norte-americano, mas o esperto deputado continua à frente de empresas ligadas ao grupo. Se guarda alguma relação com o nome, fica o aviso: atenção, trabalhadores e sindicalistas, comer Mabel faz mal à saúde e ao futuro dos seus filhos.  

Mas vamos adiante.

Até antes da traição da última noite de quarta-feira, que continua pelo menos até quando o PL se transforme em lei, o Tribunal Superior do Trabalho determinava que a terceirização no Brasil só devia ser dirigida a atividades-meio. Esse entendimento servia de base para decisões de juízes da área trabalhista, e mencionava que poderiam ser contratados os serviços de vigilância, conservação e limpeza, bem como “serviços especializados ligados à atividade-meio do tomador”, “desde que inexistente a pessoalidade e a subordinação direta” do funcionário terceirizado com a empresa contratante.

Bom, já antes dessa última traição do congresso, na prática não era bem assim. Falo com a experiência de quem trabalhou na administração de contratos e licitação de empresa estatal. Se assim era o espírito da lei, assim não era o seu cotidiano. O que isso quer dizer? Nas relações de favor que se criaram no Brasil, que passa pela colonização portuguesa e o trabalho escravo no lar do senhor, contratados de empresas terceirizadas passam por indicação de gerentes de empresas contratantes. Mas entendam, tudo  conforme a carne da lei. Nada no papel. Tudo no aceno, no piscar de olhos, no aperto de mão, em cima da lei de costumes. Nada que venha a ser provado por documentos materiais. Mas agora, o que era uma transgressão às normas éticas, passou a ser um projeto de lei. É o cinismo que campeia sob votação no congresso. A sacanagem é legal. O que isso quer dizer?    

O G1, da Globo, publica:

“Críticos apontam que ao direcionar a contribuição ao sindicato da atividade terceirizada e não da empresa contratante, o trabalhador terceirizado será atrelado a sindicatos com menor representatividade e com menor poder de negociação.

No setor bancário, por exemplo, os terceirizados não serão representados pelo Sindicato dos Bancários, que teria mais poder de negociação. Portanto, o terceirizado que trabalha num banco, por exemplo, não usufruiria dos direitos conquistados pela classe bancária”.

Mas há muito, os empregados que possuíam contrato de trabalho como terceirizados perderam os benefícios conquistados pela categoria, como, por exemplo, piso salarial maior, plano de saúde, vale-alimentação, participação nos lucros. Explicação: eles não eram da categoria, argumentava-se. Entendam. Por exemplo, recepcionistas em um banco estatal não eram bancárias. Eram prestadoras de serviços. Digitadores de documentos e cheques não eram bancários. Eram trabalhadores privados especializados na arte de ler códigos eletrônicos. Mas agora os próprios caixas e trabalhadores da retaguarda de um banco podem sair também da categoria de bancários. Vão se misturar aos sem categoria de sempre.

As notícias mencionam de passagem que a representatividade sindical passa a ser do sindicato da empresa contratada e não da contratante, na terceirização no serviço público. Insisto: há muito era assim nas atividades-meio, ou seja, nas atividades que não eram o objeto de trabalho da contratante. Quero dizer: há muito os trabalhadores sem força organizativa haviam sido forçados e a emigrar para falsas caracterizações da sua atividade. Mas isso era legal, digamos. Era um bom negócio para as estatais, que em tese deviam servir ao interesse publico, e contratavam pelo menor preço. Uma legalidade de socialismo difamado, ou melhor, de exploração socializada. Eles, os terceirizados de atividades-meio, eram os outros – os párias do serviço público.    

Algumas notícias, em um cantinho de boxe, falam também que muitas vezes essas empresas terceirizadas têm capital social muito baixo, com poucos bens no nome da empresa ou dos sócios, e o trabalhador acaba enfrentando um longo périplo na Justiça para reaver seus direitos, dizem os representantes dos sindicatos. Mas já no cantinho dessa nota da imprensa passa-se ligeiro, feito gato sobre as brasas, pelo “capital social muito baixo” das contratadas. Não, amigos, muitas vezes as terceirizadas não têm capital muito baixo. Mais de uma vez, elas têm capital nenhum. A empresa é a documentação contida em uma pasta, que o licitante carrega, ao lado de sorrisos e promessas nada republicanas. Isso quer dizer: o capital de contratadas é no máximo a capital, onde moram. O capital é a capital. Mais papéis, papéis e muita esperteza. Mas tudo dentro da lei. Documentos de certidões negativas, capitais declarados em registros de cartórios, objeto social do contrato que é só lábia, palavras e palavras.

Mas continuemos ao redor do mundo fantasioso da notícia. Na Folha de São Paulo:

“Para as empresas que contam com a desoneração da folha, a retenção sugerida pelo governo era de 3,5% sobre o faturamento (média das duas novas alíquotas que ainda não foram aprovadas pelo Congresso). O relator decidiu que o recolhimento será pelas alíquotas atuais de 1% e 2%.

Em acordo com o governo, o projeto prevê que a contratante recolherá ainda 1,5% de IR, 1% de CSLL, 0,65% de PIS/Pasep e 3% de Cofins. O FGTS ficou de fora e será recolhido pela contratada....”.

As dúvidas são respondidas neste passo:

“Ao fim de um contrato, que direitos o trabalhador terceirizado terá?

Todos os direitos previstos na CLT, como multa do fundo de garantia, pagamento proporcional de férias, 13º salário e outros benefícios devidos, que devem ser pagos pela terceirizadora”.

Noto que há, na maioria das notícias, uma evidente confusão entre contratadora e contratada. Uma deve ser a agente, a contratadora – a que determina o contrato. Outra, a paciente, a contratada, que sofre a ação do contratante. Assim como há confusão também entre terceirizadora, o agente da ação, e terceirizada, a paciente. Mas fiquemos, por exemplo, no pagamento do FGTS, que a redação confusa deixou nas costas da empresa que terceiriza, quando é encargo da terceirizada. Pois bem, mesmo assim, isso não é verdade. Na prática. O funcionário responsável pela fiscalização do recolhimento dos encargos trabalhistas não tem condições de acompanhar TODA a folha do contratado, na integridade dos salários da contratada. A contratada pode apresentar recolhimentos de obrigações do contrato em outra empresa, sem rastros. Mais: se a contratada recolhe sobre os salários de todos os trabalhadores, mas se não o faz no valor dos salários pagos, sabe Deus. E o Diabo.

Em resumo, teremos pelo projeto de lei, que podemos chamar PL Mabel, escolas sem professores, bancos sem bancários, hospitais sem funcionários, serviço público sem servidores, jornalismo sem jornalistas, e até mesmo funcionários sem função, substituídos pela carne nova terceirizada, que vem com sangue para a máquina do lucro mais cínico, que invadiu de vez a esfera pública. O que faz sentido. A Lei Mabel vem de um congresso terceirizado, que não representa a categoria do povo trabalhador, pois sofreu a terceirização das empresas Eduardo Cunha, Renan Calheiros, Sandro Mabel e companhia. O Barão de Itararé numa das suas reflexões falava que “O homem que se vende, recebe sempre mais do que vale“ . O que vale dizer, enfim: esse congresso não vale nem um biscoito. Nem uma rosquinha Mabel.


* Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici, “Soledad no Recife”, “O filho renegado de Deus” e “Dicionário amoroso de Recife”.  Tem inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao ensino em colégios brasileiros.

2 comentários:

  1. O médico que trabalha para planos de saúde é um terceirizado. Trabalhei assim a vida toda, 35 anos, e me ferrei. Posso garantir que é péssimo.

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  2. Professores, médicos, engenheiros, etc, querem aumento. Tudo muito bem, exemplo: se for na base de R$ 8.000,00 (oito mil reais), a exigência de um trabalho honesto, cumprindo horários estabelecido por lei trabalhista, com certeza eles reclamam. Por que? Eles acham melhor ganhar três mil aqui, dois ali, quatro acolá... trabalhando olhando para o relógio pra não perder as "virações" que passam do ordenado. Profesores ensinando em diversos colégios! Isso tudo para conviver com os amigos e amigas do mesmo nível. Isto é Brasil!!!

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