O canto de alvorada
* Por
Aleilton Fonseca
O dia já clareava, com
os avisos dos pássaros. A hora certa do canto de Alvorada. Era um belo galo,
senhor absoluto da primeira hora da manhã. O nome era um batismo de fé num
futuro de glórias. Alvorada, desde frangote, já dominava o terreiro: distribuía
bicadas nas canelas dos galinhos que ousassem desafiá-lo. Mestre Ambrósio, anos
a fio a criar galos de raça, saberia a hora certa de fazê-lo descer à rinha
para brigar. Criador experiente, em cada ninhada escolhia o filhote que daria
um lutador imbatível durante várias temporadas. Muita fama, algum dinheiro,
sensação e certeza de que a rinha continuava firme, apesar da recente
proibição. Na cidadezinha, um lugar sem outros atrativos, muitos gostavam das
rinhas, nos finais de semana. Era a única diversão de peões, feirantes,
pedreiros, vendeiros e até de algumas pessoas influentes, que ajudavam a manter
a rinha funcionando.
Mestre Ambrósio
confiava no futuro de Alvorada. Aquele galo, sim, o melhor de todos. Ia ser,
com certeza. Na hora certa, quando estivesse preparado, com esporões em riste,
entraria na arena para estraçalhar. Com apostas de favorito, transformaria em
pinto qualquer um dos valentões calejados de pelejas e vitórias. Os
freqüentadores da rinha acompanhavam o crescimento do galo, admiravam-se da dedicação
do tratador e de sua fé na força do animal. Alvorada já era famoso na praça,
antes mesmo de iniciar sua carreira de glórias. Era conhecido dos maiores
apostadores, que já viviam na expectativa de assistir a sua grande estréia.
Alguns arriscavam uma proposta pelo futuro campeão, ouvindo todos a mesma
resposta firme do treinador:
— Este galo eu não
vendo por dinheiro nenhum.
O galo já valia uma
fortuna. Promessa certa de grande desempenho. Os apostadores queriam vê-lo em
ação, mas mestre Ambrósio não tinha um qualquer de pressa. Já adulto, o animal
estava forte e arisco, não encontrava páreo nas lutas de treinamento. Do alto
de seu canto, agitava as asas com firmeza e harmonia, riscava o chão, marcando
seu território, absoluto no terreiro. Galos experientes, com vitórias contadas,
apanhavam, baixavam a crista diante das bicadas e dos esporões do futuro
campeão. Mestre Ambrósio sorria satisfeito. Tinha certeza, já previa os lances
das melhores brigas no meio da rinha. Alvorada faria estrago, invencível anos e
anos. Ia ser, mas na hora certa. Por enquanto, esperassem.
Ambrósio sabia: era
preciso ter calma e calcular o momento certo da estréia. Uma coisa era o
terreiro, calmo e arejado. Outra coisa era a rinha, o círculo apertado, o
barulho da platéia, a pressão dos olhares. Alvorada tinha força de brigão, mas
ainda não estava pronto: faltava muito pouco.
O criador tinha uma
afeição diferente por esta ave. Era o resultado de muitos cruzamentos de galos
de raça com as fêmeas mais ariscas. Desde que deitara aqueles ovos de casca
áspera, mais dura que o normal, tivera a intuição de que um deles daria um
macho dos melhores já produzidos no seu terreiro. Acompanhou o choco passo a
passo, cuidou para que a galinha não demorasse de voltar ao ninho, para que os
ovos não esfriassem nem gorassem. As semanas se passavam; agia ali a natureza,
com seu ciclo perfeito. O futuro galo de briga ia-se gestando.
Quando os ovos
começaram a se romper, um deles exigiu bicadas mais fortes do filhote. Ele veio
à luz, estreou um pio repetido, forte, meio esganiçado, desde já imponente. Era
um bom sinal. Certeza de canto firme e asas poderosas. Por coincidência ou
cuidado, Ambrósio estava por perto e ajudou a alargar a saída, afastando as
cascas com a unha. Riu satisfeito ao receber a primeira bicada do filhote em
seu dedo. Ali estava, talvez, o animal tão esperado.
Mestre Ambrósio tocava
há tempos o negócio da criação de aves de raça. Mas o que o empolgava mesmo
eram os galos de briga, paixão herdada do velho pai. Nas tardes de sábado, a
rinha era como um estádio. Os aficionados chegavam de vários pontos da cidade,
com seus animais de estimação super bem-tratados, transportados em tipóias
típicas, bordadas por suas mulheres ou encomendadas às costureiras das
vizinhanças. Eram interessantes essas peças, com suas abas, com alças
semelhantes às de sacolas de tecido, um bojo onde se colocava o corpo do animal
e com dois furos paralelos, por onde passavam as pernas que iam pensas, pelas
ruas, ou em guidões de bicicletas.
A rinha fazia parte da
tradição do lugar, funcionava ali há mais de cinqüenta anos. Um grupo de
trabalhadores do interior de Sergipe ali se estabelecera, trazendo a novidade.
O finado mestre Jorge, pai de Ambrósio, trouxera da terra natal, junto aos
patrícios, os primeiros galos de raça e de briga, com a idéia e o sonho de
tocar uma rinha. Começou com a cara e a coragem, devagar, com dedicação e
vontade. O negócio foi prosperando aos poucos, com a criação e a venda de aves
de raça. Mestre Jorge foi desenvolvendo seu tino de treinador, ganhou a
experiência de preparar os frangotes para a luta. Os bichos, uma vez adultos,
bem nutridos com milho e ração preparada em casa, tornavam-se pequenos
gladiadores de pena.
A rinha era um templo:
espaço de consagração e decepção, entre vitórias e derrotas. Ali começava ou
acabava a fama de um galo de briga e de seu dono ou tratador. Tal como uma
praça de touros, a rinha se desenhava enquanto palco de vida e morte. Os
animais se enfrentavam com uma fúria silenciosa, olho no olho, crista a crista,
a bicadas e golpes de esporões afiados. O sangue e as penas, num ruflar de asas
ariscas, cristas dilaceradas, os pescoços arrepiados. As batalhas levavam horas
e se transformavam em tema de discussões, dias e dias. Nas paredes, algumas
fotos antigas, outras mais recentes, os assentos de madeira em volta, como uma
pequena galeria de circo. Era uma arena trágica para os galos, o deleite dos
amantes do estranho esporte.
O galo que perdia o
combate cambaleava até cair. Moribundo, ia para os tratos com ervas e ungüentos
que pudessem recuperá-lo aos poucos, se agüentasse. Curado, poderia mais tarde
retornar à rinha para as grandes revanches. Porém, se morresse em combate, ia
direto para a chamada panelada de sábado, degustada pelos participantes do
esporte, regada a cerveja. Já os vencedores cresciam no conceito de todos. Seu
dono amealhava considerações. As apostas subiam cada vez mais. O animal pegava
valor no preço, como subia o valor de um canário que cantasse melhor após a
primeira muda de penas.
O tempo glorioso de
Mestre Jorge passou. O velho tratador não resistiu à decepção de ver o seu
melhor galo, pelo qual chegara a enjeitar uma oferta alta em dinheiro vivo,
perder uma luta e morrer na rinha. Trovão caiu feio, sangrado por um franguinho
de primeira luta. Um golpe de sorte, um puro acaso. O velho Jorge entendeu o
pressentimento que tivera naquele dia. Não tivera tempo de fazer a simpatia
especial que dava mais força ao galo. Subestimara o inimigo, e Trovão morreu. O
tratador, chateado demais, quebrou as regras: não deixou que levassem Trovão à
panelada daquele sábado. Enterrou o galo no terreiro, como um ente querido, ao
lado de seu saudoso cachorro perdigueiro. Depois disso, o velho Jorge perdeu a
graça, ficou triste e desanimado. Não preparou nenhum outro galo de briga.
Morreu com essa tristeza, sem jeito que se desse.
Mestre Ambrósio herdou
o lugar do pai. Desde menino já acompanhava o velho, ajudava no trato diário
das aves, aprendia a profissão por vivência e entusiasmo. E agora, experiente e
afamado, sabia que cada galo tem a hora certa de subir ao ringue, encarar o
inimigo de frente, sem cacarejar. Havia lá uns segredos que guardava para si
mesmo, algo como uma superstição, que ele empregava. Quando preparava um galo
para briga, tratava-o de maneira especial. Deixava-o a sós com as galinhas,
dono do terreiro, por três dias. O galo ali se sentia senhor absoluto, sem
rival que lhe disputasse as fêmeas. Horas antes da luta, o mestre recolhia a
ave, prendia-a num abrigo ali mesmo no terreiro, e soltava outro macho em meio
às galinhas. O lutador, privado de seus privilégios, e vendo o rival livre para
desfrutar de suas fêmeas, ficava inquieto, riscava o chão com as esporas,
cacarejava alto, inconformado. Dali saía para a rinha certamente com muita
raiva acumulada. E descontava no adversário, com toda fúria, castigando-o a
bicadas certeiras, com esporões vingativos. Depois da luta, o galo treinado por
mestre Ambrósio regalava-se de volta ao convívio com suas fêmeas. Esse era o
segredo a sete chaves que tornava mestre Ambrósio um treinador respeitado, já
que vencer seus galos era um desafio quase impossível. E nisso também se
apostava, quando e quem o venceria. A fama corria, vinham tratadores de outras
cidades, e mais de longe, adversários cada vez mais qualificados. Galo de
Ambrósio era invencível, até que um dia se provasse o contrário.
Muitos queriam ver
Alvorada lutar. Alguns para admirar os lances de perícia adquirida nos treinos,
outros com sede de ver o tratador derrotado.
— Está com medo de
botar o galo na rinha, compadre?
A provocação irritava
mestre Ambrósio. Por que tinham tanta vontade de derrotá-lo, se ele preparava
galos para todos, se proporcionava espetáculos que valiam pelas apostas e pelas
diversões? Ora, talvez por isso mesmo. Tudo fazia parte da mesma festa. A sede
de pequenas crueldades permeava aquele esporte esquisito. Uma delas era o gosto
de ver o favorito perder a briga, pela emoção da surpresa e do desafio.
Degustar a carne de um favorito, inesperadamente derrotado, era talvez mais saboroso.
Mestre Ambrósio se preocupava com isso. Mas estava certo de que não iam
conseguir derrotá-lo. Alvorada estava pronto para brigar bonito, de igual para
igual, com o melhor galo que aparecesse. Com a velha simpatia que pai lhe
ensinara deixaria o galo enfezado e feroz, capaz de derrotar o qualquer que o
desafiasse. Mas, e se não fosse um dia bom? E se Alvorada perdesse a briga,
como acontecera com Trovão há tantos anos? Este era o receio do tratador, pelo
amor que sentia pelo galo, um verdadeiro animal de estimação.
— Como é, vai ou não
vai botar o galo na rinha? Ou está com medo?
— Vou, claro que vou.
Vocês vão ver.
Espalharam o boato de
que Alvorada subiria à rinha na próxima jornada de lutas. As apostas foram se
multiplicando, nas rodas de conversas, nas praças, nas feiras. Era clima de
festa esperada, sem volta. Mestre Ambrósio, de surpreso com a notícia, se viu
enredado, que não podia recuar. Mas o treinador se perguntava se o galo estava
mesmo pronto. E não havia jeito de adiar a estréia no sábado. As apostas
cresciam, a notícia da luta se espalhava entre os interessados, corria até nas
cidades vizinhas. Alvorada havia de subir à rinha sem falta, sob pena de
provocar pilhérias, descrédito, desmoralização. E isso Ambrósio não podia
tolerar. O galo estava bem treinado, forte, em forma. Certamente estava pronto
para a briga. Mas isso garantia que iria vencer? No terreiro, o tratador
observava a ave, que ciscava despreocupado, soberano. Ora, Alvorada venceria
qualquer peleja.
No sábado a rinha
estava apinhada, entre conversas e animação, na torcida pelos galos, nas brigas
preliminares. Os homens se acomodavam como era possível, na casa lotada, com
visitantes de fora, alguns estranhos, com seus galos a tiracolo, gente de
outras bandas. Chegava a hora de se definir o adversário de Alvorada, pela
escolha da platéia, ou pelo desafio da maior oferta em aposta. O desafiante
firmava o valor da aposta que oferecia, como uma espécie de leilão da luta.
Entre os desafiantes, dentre os da cidade, apenas dois fizeram um desafio,
porém sem convicção de que pudessem vencer. Naquelas circunstâncias, seria
honroso desafiar o galo de Mestre Ambrósio, ainda que para dali ver sua própria
mascote ir direto para a panelada de sábado.
Na hora de firmar o
desafio, surgiu, da última fila, a voz de um visitante. Era um homem moreno,
estatura média, cabelos grisalhos e bigode ralo. Nunca fora visto antes por
ali. Trazia um galo à mão, numa tipóia bem bordada, o bicho de olhos vivos,
piscando sem parar, como se nervoso com o barulho do ambiente, de prontidão
para a luta. Com voz pausada, o homem fez, em desafio, uma aposta dez vezes
maior que qualquer outra oferta já cantada naquela rinha. E diante dos olhares
surpresos e silenciosos dos presentes, o desafiante se apresentou.
— Sou Manuel Ramos,
venho de Estância, cidade de seu pai. Sou filho de um velho compadre de Seu
Jorge. Eu também trato de galos de briga; aprendi com meu pai . Eu soube de sua
fama, resolvi vir para o desafio. Este aqui é o melhor galo que já tive na
vida. Venho cuidando para que seja um vencedor. Estréia hoje para valer, igual
a seu galo. Vamos ver quem é melhor.
Mestre Ambrósio coçou
a nuca, acariciou a crista de Alvorada na tipóia vermelha, com frisos brancos.
Pensou um pouco. Não havia mais jeito. O desafio estava posto de forma
irrecusável. Era confrontar Alvorada contra o galo do visitante, que aparentava
ser um treinador experiente, firme e confiante. Era um lance arriscado, mas não
podia recusar.
— Muito prazer, seu
Manuel. Aceito a aposta – disse, com certa preocupação, diante do vozerio
geral.
Na hora da luta, cada
tratador fazia os preparativos finais para o combate. Acertavam os esporões de
metal nas patas dos bichos. Massageavam as asas e o pescoço, apertavam o bico
abrindo e fechando algumas vezes, faziam gestos de avançar com a mão sobre a
ave para apurar os seus reflexos. Diante da expectativa da platéia, inquieta,
em conversas e comentários animados, era hora de se iniciar o combate. Como um
ritual, os galos eram apresentados à platéia, seguros pelas asas pelos
treinadores, em lados contrários da arena de luta. Assim alçados, ao sinal de
uma contagem de um até três, soltavam-se as aves na arena mortal.
Os dois galos logo se
encararam, arrepiando penas do pescoço e das asas, cabeças em riste, olhos
adrenalinos. Reconheciam-se já em disputa pelo mesmo espaço, correram para o
centro da rinha, em franco combate. Era a sorte lançada. Um balé de gestos
agressivos, numa coreografia de volteios, saltos, golpes, espera, avanços e
recuos, diante da gritaria animada dos torcedores em volta. Dois galos bem
treinados, uma briga com lances espetaculares, como poucas vistas por ali.
Eu, narrador futuro,
me espremia num canto, mais atrás, firme na ponta dos pés para ver os lances da
briga. Sorrateiro, bem quieto, com medo de ser posto para fora, pois proibiam
meninos naquele lugar. Mas o dia era de total atenção ao centro da rinha, ou,
pelo simples, toleravam minha presença discreta. A cada bicada, a cor
avermelhando-se nas cristas e pescoços dos galos, isso me deixava preso no
misto de angústia, pena, expectativa, sem saber para que ave torcer, com medo
de ver uma delas, cada qual tão bonita, cair derrotada na rinha, entregue ao
abate, direto para a panela.
Em meio àquela gritaria,
as aves guerreavam, em gestos acirrados, mostrando os efeitos de treinamentos
requintados. Manuel, nervoso e arisco, gritava para seu galo desafiante: —
Vamos, Veloz! – revelando o sugestivo nome do combatente. Mestre Ambrósio
permanecia calado, concentrava-se em estudar, nos lances dos animais, qual era
a tendência da luta. Embora calado, notava-se uma aflição no seu cenho
enrugado. Ele sabia quando uma briga era das mais ferozes, daquelas que deixava
um galo morto e outro bastante estragado. E essa era uma briga das mais
perigosas. Ele avaliava o esforço das aves, sentia pelos saltos e golpes de
Veloz que Manuel era um excelente treinador.
Ia a luta se
desenrolando, de parte a parte, os bichos se atacavam, se revezam em golpes
mais fortes. Veloz era melhor nos saltos, quando suspendia o esporão de forma
perigosa para Alvorada. Ia acertando-o na coxa, sempre arriscando encaixar um
golpe certeiro, talvez mortal. Esses golpes repetidos serviam para minar a
resistência do inimigo pouco a pouco, deixando-o sem forças para saltar, para
avançar. Com tempo, ia se cansando, ferido na base, acabava se entregando aos
golpes fatais do adversário. Alvorada era mais forte, atacava com mais
consistência e às vezes acuava Veloz num ponto da rinha, de um lado ou do outro.
Havia equilíbrio, a luta mostrava-se empatada, sem vantagem clara para uma das
aves.
Nas brigas de galo
acertava-se, por acordo, um intervalo. Servia para descansar um pouco os
lutadores, quando se julgava a luta empatada. O treinador podia ajustar as esporas
dos bichos, limpar os pescoços sanguinolentos, massagear o peito, refrescar com
um curioso banho. O treinador enchia a boca de água gelada, segurava a ave
diante de si, na altura do seu rosto e borrifava, soprando o líquido da boca no
corpo da ave, daí massageando o peito e as coxas para aliviar as dores e a
tensão. Alguns acariciavam seus galos, até beijando-lhes o pescoço como
incentivo à luta. Mas cada treinador só podia pedir um intervalo de cada vez, e
se o outro concordasse. Só tinha direito a novo pedido, depois que o adversário
usasse o mesmo direito.
A briga empolgava a
platéia. Os galos não decepcionavam. Alvorada distribuía toda a sorte de
golpes, conforme seus treinos mais requintados. Veloz, no entanto, era um galo
surpreendente, forte, bem treinado, ou mesmo o que se diz: — um galo bom de
briga! Um páreo duro para mestre Ambrósio. Os bichos seguiam em saltos,
bicadas, negaceios de asas, olho no olho, procurando acertar um ao outro com os
esporões em riste. Um balé de golpes e saltos, desenhando ziguezagues na arena,
uma coreografia que deixava respingos de sangue pelas cabeceiras do ringue, no
revestimento de um tecido rústico com enchimento acolchoado. A platéia
admirava-se da disposição das aves na briga. Os mais empolgados faziam novas apostas.
Alvorada e Veloz recebiam novas cotações. A torcida quase que dividida, uns até
apostando num improvável empate, se ambos restassem vivos, mas esgotados, sem
forças para lutar. Seria uma pena se um daqueles magníficos galos viesse a
morrer, numa carreira de luta tão curta, mal iniciada. Podiam dar espetáculos
contra inimigos mais fracos, fazendo o delírio dos torcedores.
Este narrador
espichava o pescoço, procurava acompanhar a dança de golpes pelo tablado,
prognosticando o fim das duas aves. Parecia-me que ambas estavam prestes a cair
mortas, mutuamente vencidas, causando um silêncio de pena. Seria um castigo
para todos aqueles homens.
A briga continuava e
Veloz agora parecia estar em vantagem, acertando mais bicadas do que levava.
Alvorada lutava, mas sempre recuando, com saltos cada vez mais baixos, sem
alcançar vantagem contra o inimigo. Manuel, satisfeito com o desempenho de sua
mascote, observava de esguelha, verificando o ânimo de mestre Ambrósio, se ele
entregava os pontos. Mas a regra era clara, se o tratador entregasse os pontos,
o galo perdedor saía desacreditado, jamais voltava a lutar na rinha. E Alvorada
não merecia tamanha desonra, já que, em desvantagem, bastante machucado, lutava
sem medo contra a fúria de Veloz. Mestre Ambrósio, observador experiente de
quantas lutas, sentia que os golpes de seu galo atingiam o inimigo, mas não
faziam um bom efeito. E viu que, pela posição que Veloz adotava, os esporões de
Alvorada não o alcançavam em cheio. Restavam forças para reagir, mas os golpes
não surtiam efeito. Assim, a sua derrota era uma questão de tempo, suas forças
iam-se minando, o cansaço ia-lhe abatendo. Só um intervalo poderia reverter a
situação, corrigindo-se o ângulo das esporas de metal. Era preciso fazer algo:
uma parada, um borrifo de água gelada, uma massagem no peito, algo que salvasse
Alvorada da derrota. Mas era nítido que Veloz estava vencendo e Manuel não
consentiria em parar a luta. Confiante, enfrentava o olhar nervoso de mestre
Ambrósio, diante da gritaria da platéia, que sentia a proximidade de uma
definição na luta, uns apreensivos pelos valores apostados, outros comemorando
a vitória iminente.
Os gritos se chocavam:
Veloz! Veloz! Alvorada! Alvorada! O galo de mestre Ambrósio cambaleou pela
primeira vez, junto à borda almofadada da rinha. Mas seguia lutando, aplicando
os golpes de esporão, mas sem atingir o alvo em cheio. Nesse momento, o
tratador sentiu perto o perigo de perder sua ave predileta. Pensou em fazer
algo, pedir uma pausa, sair da luta, salvar Alvorada. Mas não tinha coragem de
ceder, pois sentia que o galo queria lutar, espanando as asas, perdendo penas,
o sangue escorrendo da crista. Eram lances fortes, bicadas firmes, esporeadas
no ar, cortes nas coxas dos gladiadores de penas, ambos sangrando, bicos abertos
de cansaço, penas espalhadas pelo chão. A platéia, quase em delírio, seguia
gritando a cada lance mais espetacular, aos gritos: “Vai! Aí! Bica! Vai!
Sangra! Mata!”. Era a expectativa de um lance fatal. Pelos movimentos da luta,
muitos já esperavam ver Alvorada tombar vencido.
O galo de Ambrósio
cambaleou mais de uma vez e, diante de uma bicada forte de Veloz, os torcedores
já esperavam de pé pela queda fatal. Ali, quase solenemente, fez-se um silêncio
longo. Uma espera, uma aflição, um galo bicava, o outro retrocedia, sem ânimo.
Então mestre Ambrósio, meio que em desespero, quebrou sua tradição: de calado
rompeu a pular e a gritar, com as palavras de incentivo que usava ao treinar o
seu galo.
— Eia! Vai! Pega!
Reage, Alvora! Enfrenta! Alvora!
Era só sua voz no
recinto, nervosa, quase embargada, uma lágrima vinha brotando dos olhos
cansados do velho tratador. Foram a voz e os apelos de Ambrósio? O que foi que
deu ânimo novo ao galo? O que se sabe é que Alvorada soltou um cacarejo como um
gemido de aflição, agitou as asas, riscou o chão e partiu instintivamente para
cima do inimigo. Veloz, num lapso de surpresa, abaixou um pouco o corpo,
recuando. Alvorada, por estar meio desequilibrado, acertou de lado, com o
esporão em cheio no pescoço do inimigo. O golpe prostrou Veloz na rinha e este
foi o último gesto de luta de Alvorada, que ambos tombaram lado a lado, com as
cristas e os pescoços ensangüentados.
A luta chegava ao
final, já se apurava o resultado. Ou se considerava o empate por esgotamento,
ou o empate por morte dos dois galos. Já se examinavam as aves, daí logo
constatando: Veloz, sem reação, não respirava: estava morto, vencido, nas mãos
de seu dono desapontado. Veloz, conforme a praxe, seguia dali para se juntar
aos demais perdedores da tarde, como iguaria da panelada. Alvorada, sem reação,
ainda respirava: estava vivo, embora extenuado. Já recebia os cuidados nos
braços de mestre Ambrósio, agora feliz, aliviado.
Esportivamente, Seu
Manuel veio cumprimentar o mestre, e pagar a aposta devida. Prometia voltar
para novas jornadas. E assim avaliou:
— Foi uma boa luta, em
verdade um empate – disse, traindo no ritmo da fala uma certa tristeza. Dobrou
a tipóia de Veloz, tentou enfiar num dos bolsos, mas não conseguiu. Então,
olhou-a mais uma vez e atirou num canto, na minha direção. Eu peguei a tipóia
do galo vencido, guardei como troféu que até hoje figura em meu velho baú de
lembranças.
Seu Manuel se
despediu, que já ia pegar a estrada, de volta a sua cidade. Ali, de ouvidos
atentos, ouvi as suas observações, que deixaram Ambrósio em silêncio,
preocupado.
— É uma pena. Seu galo
é muito bom, mas, assim ferido, dessa noite não escapa.
Aquele sábado terminou
em festa, com rodadas de cerveja, cantigas ao som de sanfonas e violões. A
panelada já ia para o fogo e a expectativa era grande, pois diziam que galo
bravo dava mais caldo, tinha mais sabor.
Mestre Ambrósio não
ficou para comemorar. Seguiu para casa com o seu campeão na tipóia, muito
ferido, num silêncio que só cedia a um ruído de cacarejo impossível, como gemidos
de dor. Em casa, Ambrósio preparou beberagens que lhe enfiou bico adentro,
passou ungüentos medicinais no corpo do bicho, tratou os ferimentos da crista,
fez curativos no pescoço. Agasalhou Alvorada num ninho especial, com serragem e
maravalhas finas, num canto bem arejado do terreiro. Ele se sentia culpado pelo
sofrimento do animal, e orgulhoso pela vitória contra o pior inimigo que já
vira na rinha. Manuel era um treinador dos melhores, com certeza. Ambrósio
acariciou seu galo de estimação, abaixou-se e o beijou no bico. E,
aproximando-se das aurículas do bicho, disse: “Boa noite, velho!”. Mas logo
voltou, para ficar observando-o mais um pouco. “Você vai escapar dessa, velho”,
ainda disse. E daí se recolheu, entre enternecido e confiante.
Na cama, sua mulher,
Dona Dália, já ressonava, que dormia sempre mais cedo. Ela detestava brigas de
galo. Já deitado, mestre Ambrósio sentiu o cansaço do dia, dos anos, da vida.
Pela primeira vez sofrera de verdade com uma briga de galo. Sentira um aperto,
quase uma dor no peito, com medo de perder. Não pela aposta em si, mas pela
vida do galo. Não queria ver o bichinho cair morto diante de todos, virar
tira-gosto de sábado, devorado com cerveja. Agora, Ambrósio sentia: Alvorada
não era apenas um galo; era seu animal de estimação, mais que um amigo. E se
emocionou, lembrando do trato diário com o pinto, o frango, o belo galo.
Vinha-lhe a decisão firme. Nunca mais entregaria Alvorada à rinha. Deixaria
essa vida de uma vez, como Dália vivia pedindo. Livre, Alvorada viveria solto
pelo terreiro, a cobrir as galinhas de raça, como um verdadeiro reprodutor. Era
o melhor galo de todos os tempos. Merecia ter uma linhagem, ninhada após
ninhada. Os filhotes de Alvorada iriam povoar todos os terreiros, com aquele
porte de campeão invencível, com aquele canto que encantava a manhã. Um canto
que fazia os pássaros suspenderem a voz para ouvir.
Ambrósio estava sem
sono, via a noite se arrastar. Como se sonhasse de olhos abertos, revia os
piores lances da luta. Imaginava Alvorada morto, como seria sua enorme
tristeza. Mas logo revia as melhores cenas, e o lance final da luta: o galo
inimigo tombando, Alvorada reagindo, olhos semi-abertos, ferido mas vivo, vivo
como sempre. Alvorada vivo!
A madrugada declinava,
começava a clarear, com os avisos dos pássaros. Era a hora certa, como todo dia
era, do canto de Alvorada. E, de repente, esquecido das feridas da ave, que
também doeram, agudas, dentro dele, Ambrósio apurou bem os ouvidos. E de lá do
terreiro, ouviu o canto de Alvorada. Era o belo canto de sempre, absoluto sinal
de vida, entre os primeiros raios da manhã. Era um canto nítido, claro,
imponente, superior: este canto, este que só mestre Ambrósio ouvia, e de agora
para sempre ouviria, todo dia. Porque, nas redondezas, outros cantos longínquos
assumiam o vago romper da manhã. No terreiro desolado, era só a alvorada que
rompia e se elevava, e era alva como todos os dias. No entanto, estava envolta
num silêncio de luto – que só se escutava, ali e além, o canto triste dos
passarinhos.
O conto se encontra no
livro O Canto de Alvorada, de Aleilton Fonseca, ed José Olympio, 2003.
*
Aleilton Fonseca é escritor, Doutor em Letras (USP), professor titular pleno da
Universidade Estadual de Feira de Santana, membro da Academia de Letras da
Bahia, da UBE-SP e do PEN Clube do Brasil.
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