Quero minha mãe
* Por
Adélia Prado
Abel e eu estamos
precisando de férias. Quando começa a perguntar quem tirou de não sei onde a
chave de não sei o quê, quando já de manhã espero não fazer comida à noite,
estamos a pique de um estúpido enguiço.
Sou uma pessoa grata?
Às vezes o que se nomeia gratidão é uma forma de amarra. Entendo amor ao
inimigo, mas gratidão o que é? Tenho problemas neste particular.
Se aviso: passo na sua
casa depois do almoço, acrescento logo se Deus quiser, não sendo grata, temo
que me castigue com um infortúnio. Bajulo Deus, esta é a verdade, tenho o rabo
preso com Ele, o que me impede de voar. Como posso alçar-me com Ele grudado à
cauda?
Uma esquizofrenia
teológica, eu sei, quando fica tudo confuso assim, meu descanso é recolher-me
como um tatu-bola e repetir até passar a crise, Senhor, tem piedade de mim. Até
em sonhos repito, Senhor, tem piedade de mim, é perfeito.
Sensação de
confinamento outra vez, minha pele, minha casa, paredes, muro, tudo me poda, me
cerca de arame farpado. Coitada da minha mãe, devia estar nesta angústia no dia
em que me atingiu: “trem ordinário” Com certeza não suportava a idéia, o fardo
de ter-que-dar-conta-daquela-roupa-de-graxa-do-meu-pai, daquele caldo escuro na
bacia, fedendo a sabão preto e ela querendo tempo pra ler, ainda que pela milésima
vez, meu manual de escola, o ADOREMUS, a REVISTA DE SANTO-ANTONIO.
Mãe, que dura e curta
vida a sua. Me interditou um reloginho de pulso, mas não teve meios de me
proibir ficar no barranco à tarde, vendo os operários saírem da oficina, sabia
que eu saberia o motivo. Duas mulheres, nos comunicávamos. Tá alegre, mãe? A
senhora não liga de ficar em casa, não? Posso ir no parque com a Dorita? Vai
chamar tia Ceição pra conversar com a senhora?
Nem na festa da
escola, nem na parada pra ver eu carregar a bandeira ela não foi. Não dava para
ir de “mantor” porque era de dia com sol quente, gastei cinqüenta anos pra
entender.
Teve uma lavadeira, a
Tina do Moisés, que ela adorava e tratava como rainha. Sua roupa acostumou
comigo, Clotilde, nem que eu queira, não consigo largar. Foi um tempo bom de
escutar isto, descansei de vê-la lavando roupa com o olhar perdido em outros
sítios, sentindo e querendo, com toda certeza, o que qualquer mulher sente e
quer, mesmo tendo lavadeira e empregada.
Tenho sonhado com a
mãe tomando conta de mim, me protegendo os namoros, me dando carinho, deixando,
de cara alegre, meus peitinhos nascerem e até perguntando: está sentindo alguma
dor, Olímpia? É normal na sua idade.
Com certeza aprendeu,
nas prédicas às Senhoras do Apostolado, como as mães cristãs deviam orientar
suas filhas púberes. Te explico, Olímpia, porque pode te acontecer na escola,
não precisa levar susto, não é sangue de doença.
Achei minha mãe
bacana, uma palavra ainda nova que só os moleques falavam. Coitadas da Graça e
da Joana, que nem isso ganharam dela. Morreu antes de me ensinar a lidar com as
incômodas e trabalhosas toalhinhas. Mãe, mãezinha, mamãezinha, mamãe, e o reino
do céu é um festim, quem escondeu isto de você e de mim?
* Uma das mais consagradas poetisas
brasileiras
Nenhum comentário:
Postar um comentário