Daqui para o sonho é um
pulo
* Por Mara Narciso
“Andei, andei, andei e cansei. Cansei, cansei,
cansei e parei. Parei, parei, parei e sentei. Sentei, sentei, sentei e deitei.
Deitei, deitei, deitei e dormi. Dormi, dormi, dormi e sonhei. Sonhei, sonhei,
sonhei que andei...” (‘musiquinha’ interminável que a minha mãe cantava e
estava escondida em minha memória).
É fácil entrar num mundo de sonhos. Naquele lugar fluido do sonho bom.
Basta chegar de supetão em frente ao Casarão
da Fafil, e encontrar em plena rua uma pequena multidão se apertando
diante de uma porta. Do interior do Patrimônio Histórico ecoa uma voz feminina
que sobrevoa o Corredor Cultural e se perde ao longe. Sua melodia inebria
pessoas que estão fixas numa cena: dentro do prédio braços e pernas se contorcem,
esticando e se dobrando, feito cobra enfeitiçada por música, a linguagem da
paz. É um dançarino, de camisa branca, que tem um foco de luz sobre si. O que
seria aquele espetáculo em plena rua? Quantas surpresas nos trazem essa menina
chamada Montes Claros, “cidade da arte e da cultura”, como bem grafou Reginauro
Silva? Mas dizem as línguas nada boas, que nesta cidade atrasada não acontece
nada.
De súbito, a luz interna se apaga, a porta se fecha com um ranger,
retumbando via afora e outros dançarinos, que estão na rua pedregosa,
disfarçados e junto aos espectadores, começam a dançar, provocando interação.
Estendem os braços chamando, e do nada o povo se vê dentro do espetáculo.
Quando a música termina, o grupo entra no casarão seguido pelo seu público,
porta adentro, como num funil. De que maneira fugir dessa flauta de Hamelin? O
jeito é comprar ingresso e seguir junto. O ambiente está às escuras. Pessoas
estão sentadas no chão, vestindo suas roupas, shorts, camisetas e joelheiras.
Não há separação entre público e atores. Palavras de ordem são ditas,
direcionando por onde passar no corredor e escadas. Ao fundo está o pátio. Tudo
é breu. O palco e os espectadores fundem-se numa coisa só. A parte mais densa
do show já vai começando. O público se ajeita como pode. Talvez estejam ali
umas 200 pessoas. É algo grandioso que está acontecendo.
No fundo negro do palco, passa um filme em alta velocidade. Esse filme
começa e descomeça, conforme exige a ação. É o centro de uma metrópole. O
público é jogado dentro do turbilhão de tráfego, luzes e multidão em ritmo
acelerado. Em cena 18 dançarinos se revezam em mostrar uma dança moderna,
tipicamente urbana, fazendo uma exposição crua e dramática do que se passa nas
ruas das grandes cidades. Passos duros, sugerindo marcha de militares, são
mostrados. Assim como gestos delicados, suaves, rápidos, e até a sugestão de um
parto, ou de um morador em situação de rua, vestindo suas roupas. O esporte de
escalar paredes é mostrado, multidões apertadas, danças de rua como break, com
um show ultraforte. Depois vem a capoeira, outra marcha. Sem intervalo entre as
apresentações. Mais surpresas, casais, lutas, duplas, apertos. E pasmem: uma
pichação ao vivo. Sob dois holofotes um rapaz picha de branco a parede preta lá
no topo, desenhando prédios com habilidade ímpar.
Analiso tudo, busco explicação, mas o que sinto é o que me importa.
Inclusive quando a natureza invade a cena com suas flores se abrindo. Porém, em
ritmo acelerado, como convém a uma grande cidade. Cada detalhe é programado
para comunicar, endurecer, impactar. Somos nós os personagens dessa loucura
chamada vida. De um lado a força da juventude, de outro o molejo de corpo de
gente preparada para o ofício de entreter, com seus jogos de braço e de
cintura, formando pirâmides, escalando sentimentos, despertando o gosto pela
dança. No fundo escuro, que se apaga e se acende, vão passando flashes urbanos
como gente em estação de metrô e dentro de conduções apertadas. Há momentos em
que a disputa por espaço é asfixiante, inclusive com atores mostrando
respiração agônica.
Nas aglomerações que se tornaram as grandes cidades, há espaço para
muitas disputas, e pouco espaço para o homem. E, em cena, gente de todos os
estilos, etnias e idades, além de conformações físicas diversas. Na verdade,
uma amostra humana do que é viver num grande centro, com seus entretenimentos e
sufocações.
O prospecto diz que os bailarinos do “Grupo de Dança Compassos –
Unimontes” idealizaram o espetáculo, que fala de “temas muito próximos de nós
como a própria vida, a ciência, o desenvolvimento, a tecnologia e a
velocidade”. E também “inovações cotidianas sentidas no olhar, no deslocar, no
experimentar”. O show foi concebido por Elisângela Chaves, que também dirige e
assina a coreografia. A cenografia e iluminação, que dão alta tensão e
dramaticidade ao que se vê, foram feitas por Paulo de Tarso e André Lacerda.
Continua em cartaz com trilha sonora Underworld, Pedra Branca Organismo
Eletrônico, Matrix, Sex-InThe Track e Alice Encantada. Chamado “É muito rápida
esta história”, o espetáculo é sim, rápido e belo e carrega o público ao estado
de embriaguez. Do nada acontece um sonho, porém, sem sono. Sem sono nenhum.
*Médica endocrinologista, jornalista
profissional, membro da Academia Feminina de Letras e do Instituto Histórico e
Geográfico, ambos de Montes Claros e autora do livro “Segurando a
Hiperatividade”
Sonhos como esse tão bem descritos por você nos fazem esquecer do compromisso com o travesseiro.
ResponderExcluirAbraços Mara.
Sem querer a vida nos oferece um espetáculo inesquecível e um prazer que nem sabemos descrever. Obrigada pela presença e comentário, Núbia.
ExcluirMara, suas lítero-reportagens têm o dom de nos transportar para Montes Claros. Parabéns por mais esta.
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