sábado, 30 de novembro de 2013

Quando o Estado se vinga
  
A pena de morte é um dos temas mais polêmicos, e que despertam mais paixões, em todo o mundo quando vem à baila, tanto em conversas informais, quanto em conferências, debates, artigos de jornais etc.etc.etc. E a controvérsia se dá não apenas entre juristas, sociólogos e outros intelectuais, mas, sobretudo, entre pessoas do povo. Há uma infinidade de livros ora defendendo, ora condenando essa prática. Entendo, pois, que seja assunto pertinente a ser tratado em um espaço dedicado à Literatura. Alguns defendem, irados, esse tipo de punição, argumentando que determinados delinqüentes são irrecuperáveis e nada têm a oferecer à sociedade. De fato há quem nunca se recupere e que não traga benefício algum para ninguém. Mas... Outros, porém, opõem-se, tenazmente, à medida, classificando-a de “vingança oficializada”. E no fundo, no fundo é, de fato, isso.

Sempre que ocorre algum crime, com requintes de crueldade e grande repercussão na mídia, como, para citar apenas o primeiro exemplo que me vem à memória, o cometido alguns meses atrás, por um jovem, na cidade de São Paulo, no qual um garotinho boliviano de seis anos de idade, que aniversariava na ocasião, foi fria e estupidamente morto, com um tiro na cabeça, apenas porque, assustado, não parava de chorar, sem que tivesse a mais remota chance de defesa, o assunto sobre a pena de morte vem à baila. Pronunciamentos passionais, então, são feitos, e em profusão, defendendo a medida, mesmo por pessoas esclarecidas e ponderadas.

Desde tempos imemoriais, essa prática vem sendo adotada para punir os que suprimem vidas a quaisquer pretextos. E as execuções são feitas das mais variadas maneiras, indo do apedrejamento, do linchamento e da forca – as formas mais comuns adotadas em passado ainda recente – aos pelotões de fuzilamento, câmaras de gás, cadeiras elétricas e injeções letais, nos últimos tempos. Houve época em que execuções se constituíam em acontecimentos sociais, em uma espécie de mórbida diversão. Reuniam milhares de pessoas em praças públicas, onde eram realizadas e a maioria aceitava, como a coisa mais natural do mundo, a supressão de vidas dos condenados.

Num determinado estágio da civilização, cabia aos parentes das vítimas de assassinato punirem os criminosos. Eram as propaladas “dívidas de sangue”, que tinham, necessariamente, que ser resgatadas. Coitado, por exemplo, do primogênito que deixasse de vingar a morte do pai! Ou do irmão que não vingasse a morte de irmão! Quem se negasse a pagar esse cruel débito macabro, ou por ser avesso à violência, ou por reconhecer justiça na execução do parente (quando este a merecia), era segregado do convívio social. Passava por humilhações inomináveis e era rotulado de covarde, pecha que carregava pelo resto da vida. E tal designação era considerada a maior das ofensas que se poderia fazer a alguém.

Essas dívidas de sangue deram causa a históricas guerras entre famílias, intermináveis, algumas com até mais de um século de duração. Uma das mais célebres, nos Estados Unidos, por exemplo, foi a que opôs os Martins e os McCoys. E, na cidade pernambucana de Exu, duas famílias mantiveram disputa desse tipo por gerações, sustentando longa e inconciliável inimizade, que fez dezenas de vítimas, dos dois lados.

A pena de morte nada mais é do que o Estado assumindo a dívida de sangue. Não passa, portanto, de vingança da sociedade contra infratores. Ou seja, aquele que condena o homicídio (no caso o Estado, na figura de um preposto, o juiz), comete o mesmo delito que proíbe aos outros. Isso, no mínimo, é aberrante contradição! Um erro jamais justifica outro, seja quem for que o cometa ou qual seja a razão. Morte é morte, tanto faz se praticada mediante tocaia por algum malfeitor, com o objetivo de roubar ou estuprar a vítima, ou se causada por gás cianureto, por injeção de produto químico letal ou por tiro de fuzil de algum carrasco a serviço do Estado.

Aliás, o extermínio autorizado e patrocinado pela sociedade, do ponto de vista moral, é pior do que o dos homicidas tradicionais que, certos ou errados, têm lá (ou pelo menos acreditam ter) seus motivos. Já o executor de uma sentença de morte não tem o mínimo interesse pessoal no condenado, ao qual sequer conhece. Mata fria, impiedosa e mecanicamente um ser humano, como se estivesse matando um animal qualquer. Ademais, não foi um e nem foram apenas dois os erros judiciais cometidos por tribunais, atribuindo culpas a pessoas absolutamente inocentes, em todos os tempos e lugares. Essas aberrações jurídicas somam-se aos milhares, quiçá aos milhões e penalizam, quase que somente os pobres, os humildes, os iletrados que não têm como pagar bons advogados.

Muitos desses erros – embora não tantos como gostaríamos – são reparados a tempo, mas somente quando a pena imposta ao injustiçado é a da privação da liberdade. Em raros casos, os condenados à morte livram-se da execução, pela descoberta, localização e captura dos verdadeiros culpados. Mas esta não é, e nunca foi, a regra, senão uma exceção. Mesmo no caso de prisões indevidas, a reparação nunca é completa. Que dinheiro paga uma reputação manchada, as humilhações e os sofrimentos de quem é encarcerado sem dever? E quando o réu é condenado à morte, executado e depois se descobre que era inocente? Como reparar essa monstruosidade? Como devolver a vida ao executado indevidamente? Quem deve ser responsabilizado por tamanho erro judiciário? O juiz? O promotor? As testemunhas? O advogado? O júri? A polícia? O Estado?

Se for este último, a quem cabe a responsabilidade? Ao presidente da República? Ao governador? Ao Supremo? Todos, certamente, vão saber encontrar subterfúgios e o erro vai passar batido. Quantos, por exemplo, dos mais de um mil executados no ano passado, em 40 países onde vigora a pena de morte, não eram inocentes? Ninguém sabe! E quais são os responsáveis por esses erros? Quem os punirá? Como? Ficam as incômodas perguntas no ar... E fica o básico preceito bíblico, um dos Dez Mandamentos: não matarás! E em hipótese alguma, acrescente-se! Que se achem, pois, outras punições, que não a da “vingança do Estado”, para punir os monstros sanguinários e cruéis que, comprovadamente, as mereçam.

Boa leitura.

O Editor

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Um comentário:

  1. Tema fervilhante e que deve ser pensado e a opinião resolvida sem paixão. Erros existem e existirão. Sou favorável a pena de morte para crimes hediondos. Acho fácil optar por essa posição. Difícil é defender o oposto como você fez, e com argumentação forte, Pedro. Bom texto.

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