Leviatã*
** Por Cecília França
Ficara sabendo pelo chefe de redação que ela
havia arrumado emprego no maior jornal da capital. Não acreditou na
possibilidade de aquilo ser verdade, quão ridículo lhe parecia. Ela simplesmente não podia
ir embora de um dia para o outro, sem aviso prévio. E ele?
Entrou na redação sem olhar para
os lados, nem pensar em encarar alguém, muito menos ela. Pôde perceber o ar de
satisfação que com certeza estava estampado em seu rosto. Nunca fora amistoso
com os colegas, mas naquela hora fez questão de ignorar a presença de quem quer
que fosse. Não deixaria que ela tripudiasse sobre ele por conta dessa vitória
inesperada.
Ela ousou se aproximar, não obstante a expressão feroz que ele estampava no rosto moreno, naturalmente sisudo. Disse que ia embora no dia seguinte. Mas silêncio foi o que recebeu como resposta. Ainda assim, ela permaneceu parada ao lado dele, mostrando uma segurança fora do comum, tentando encará-lo, sem sucesso. Perguntou se ele não iria se despedir dela.
Embora a ignorasse na maior parte do tempo, ela gostava
dele. Mais do que deveria e menos do que ele imaginava. Desde que o conhecera,
alternava momentos de intensa raiva com outros de compaixão. Tinha aprendido em
alguma aula de religião de sua infância que as pessoas ruins necessitavam mais
de ajuda e amizade que as naturalmente boas, e tentava aplicar isso,
rotineiramente.
”Tchau, boa sorte”. Foi o que respondeu, após segundos de silêncio seguidos de uma disparada rumo ao hall de entrada. Interceptou-o no caminho, querendo satisfações, afinal, haviam sido anos de trabalho juntos e todos, absolutamente todos os colegas, haviam lhe dedicado um último abraço. Por que apenas ele reagia daquela forma, ela jamais entenderia. Mas ao supor o motivo, sentiu o coração saltar no peito.
Imaginou que ele não gostaria de
vê-la longe, de afastar-se dela daquela forma abrupta. Convenceu-se de que isso
justificava por completo seu comportamento arredio diante da notícia. O
arrastou pela mão até a sala de reuniões. Disse que queria ter lhe contado antes, mas que
fora tudo repentino. Confessou que aprendera muito com ele e que não gostaria
de ir embora deixando uma situação ruim.
“Ninguém está brigado aqui, só estranhei esse emprego repentino, afinal
de contas, eu também enviei milhares de currículos e não fui chamado. Você não
vai fazer nem sequer um teste?”
Respondeu que havia feito durante as férias. Um rubor de fúria cobriu a face dele instantaneamente.
“Ah, então é de caso pensado...”, balbuciou como se estivesse sozinho.
Num esforço em
vão ela dizia que ele precisava se alegrar pela conquista dela. Ironicamente,
ele gargalhava.
“Me alegrar? Sinto muito, mas não vai dar”. Ela perguntou por quê. A
pergunta que ele temia. Não poderia dizer a verdade, isso o
rebaixaria. “Porque não quero que fique
longe!”, falou, sem pensar.
O coração dela disparou. Em
segundos rememorou alguns olhares furtivos – mas profundos – que ele lhe
lançara nos últimos anos e confirmou as dúvidas anteriores de que a amava. Não
queria que fosse embora para não perdê-la. Empalideceu e começou a tremer
diante da revelação. Mentiu, baixinho, que nem imaginava. E ele, com o olhar
fixo na mesa, sustentava sua versão.
“Pois é isso, não quero que
se afaste de mim. Não quero que vá morar em outra cidade, como vou fazer sem
você aqui?”
Ao ver que as pálpebras dela levemente caíram ao ouvir isso, se deu conta de que era o monstro que muitos pintavam.
*(Demônio da inveja, segundo a
mitologia fenícia).
** Jornalista
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