"Um campo, um rio e um
lago..."
A infância, quando
feliz, permeia toda a vida de qualquer pessoa e muito mais a dos poetas, que a
tornam, ostensiva ou veladamente (não raro até de maneira inconsciente), tema
preferencial de sua poesia. É a época da energia e da disposição. É a fase das
descobertas, notadamente da beleza, que se impregna no espírito e lá permanece
indefinidamente. É o período de vida dos sonhos, esperanças e desejos, posto
que na ocasião vagos, para o qual se pretenderia (caso fosse possível, claro)
retornar, Principalmente quando os anos posteriores a uma infância feliz – a
adolescência, a maturidade e a velhice – são amargos, ásperos e decepcionantes. O
curioso é que, quando crianças, temos pressa de crescer, de amadurecer, de nos
tornarmos adultos. Só muitos anos depois percebemos o tamanho da perda com esse
amadurecimento e posterior envelhecimento.
A austríaca Ingeborg
Bachmann registrou o seguinte, a esse propósito, em seu diário, na data de 23
de março de 1971: “Sem que o escritor tenha consciência, os anos de infância
são seu verdadeiro capital. O que vem depois, e que até pode ser considerado
muito mais interessante, em nada acrescenta. Apenas anos mais tarde é que se
começa a entender o que se viu no primeiro olhar”. Essa mulher brilhante,
escritora, filósofa e, sobretudo poetisa, tinha todos os motivos imagináveis
para valorizar seus tempos de menina, vividos em uma pacata e bucólica
cidadezinha do interior austríaco, onde nasceu e viveu seus primeiros treze
anos.
Ingeborg Bachmann foi
feliz (felicíssima) na sua arte, no caso a Literatura, caso se considere “felicidade”
o sucesso na carreira que ela escolheu. Porém, se forem considerados seus
relacionamentos, sobretudo os amorosos, as coisas não foram tão felizes assim.
Pelo contrário. Nesse aspecto, a poetisa frustrou-se, em todas as relações
afetivas nas quais “entrou de cabeça” (foram principalmente três) de tal sorte que se desencantou da própria
vida. E, possivelmente, tenha até dado cabo dela (ainda se discute, até hoje, se
sua morte foi causada por um acidente ou se ela se suicidou. Tudo leva a crer
que esta última hipótese seja a correta). Daí tamanho valor que ela deu aos despreocupados
e belos anos de infância.
Ingeborg Bachmann
nasceu na cidadezinha austríaca de Klagenfurt, na fronteira com a Itália e a
atual Eslovênia, em 25 de junho de 1926. Passou uma infância e início da adolescência,
ou seja, até os 13 anos de idade, curtindo a natureza, sobretudo, como enfatizou
anos mais tarde em inúmeros poemas, “um campo, um rio e um lago”. Como não ser
artista (no seu caso, poetisa) crescendo em um cenário encantador, de contos de
fadas, como aquele? Não se estranha, pois, que houvesse desenvolvido, de forma
tão aguda, a sensibilidade poética que a caracterizou. Embora tenha escrito um
romance, “Malina”, de relativo sucesso e deixado inacabados outros dois – “Tipos
de morte” e “O caso Franza” – foi na poesia que se destacou. Estranhamente,
publicou poucos livros do gênero. O mais citado deles é “O tempo prorrogado”,
que é muito bom.
Além de poemas,
Ingeborg escreveu contos e ensaios, publicados em jornais e revistas. E principalmente,
novelas para rádio (foi, durante algum tempo, roteirista e editora da emissora “Rot-Weiss-Rot”
de Viena). Por fim, redigiu um livreto para a ópera “O príncipe de Homburg”, de Hans Werner
Hengel. Enfim, foi bem sucedida na Literatura. Mas na vida... Excluídos alguns “namoricos”,
sem grande importância, Ingeborg teve três ligações amorosas um tanto mais
sérias, todas, por razões diferentes, infelizes.
A primeira foi com o
poeta francês, de ascendência judia, Paul Celan, a quem conheceu quando da
passagem deste por Viena, em 1948. Tempos depois, voltaram a se encontrar,
dessa vez no apartamento de outro expoente do surrealismo, Edgar Jené, em
Paris. Foi a grande paixão da sua vida. A propósito desse amor, ela
confidenciou, certa feita, em carta ao compositor Hans Hengel: “Amava-o mais do
que minha vida, mas por razões diabólicas”. E por que esse relacionamento não
deu certo? Provavelmente, por incompatibilidade de temperamentos. Ou... sabe-se
lá!
Ambos chegaram a morar
juntos, em Paris, mas por apenas dois meses. Contudo, nunca se entenderam de
fato e optaram por se separar. Mas não definitivamente. Deram continuidade a um
estranho “namoro”, apenas por cartas, que durou um bom tempo. Celan dedicou-lhe
muitas de suas poesias e vice-versa. Isso mostra que os dois poetas sempre se
amaram. Mas... eram incompatíveis um para o outro.
O relacionamento
seguinte foi mais estranho ainda. Em 1952, Ingeborg conheceu o jovem compositor
Hans Werner Henzel, com o qual partiu para a Itália. Ambos permaneceram juntos
por quatro longos anos. Chegaram, mesmo, a cogitar em casamento. Mas... havia
um obstáculo intransponível para o matrimônio: o músico era homossexual
assumido. Tinha, em Ingeborg, mera “amiguinha” e confidente e nada além disso.
Nunca cogitou em se unir a nenhuma mulher, não, pelo menos, no sentido sexual. Muito
menos com a poetisa, com a qual viveu apenas como se vive com uma irmã.
Finalmente, o terceiro
relacionamento dela foi o definitivo. Não no sentido dos romances, contos e
novelas usuais, no do “happy end” e do “viveram felizes para sempre”, mas no da
destruição afetiva e finalmente física de Ingeborg. Essa ligação foi com outro
escritor, Max Frisch, o qual conheceu em Frankfurt, em 1958. O caso permaneceu
numa espécie de “chove não molha” por dois anos, até que em 1960 decidiram
viver juntos. Mas não tão juntos assim. Os dois viajavam, separados,
frequentemente e eram longos os períodos de separação. Eles variavam de local
de residência, alternando ora sua casa em Frankfurt, ora algum hotel de Roma.
Mas... de novo não havia compatibilidade entre o casal. As brigas eram freqüentes
e, cinco anos após iniciarem o relacionamento, concluíram que a união não daria
certo mesmo. E separaram-se.
Aí, porém, veio o
grande golpe para Ingeborg. Frisch publicou um livro, “Meu nome é Gantenhein”,
de relativo sucesso, em que arrasou a imagem da ex-companheira. Culpou-a,
sobretudo, e de maneira rancorosa, maldosa e mentirosa, por tudo o que de ruim
aconteceu nesse longo e tumultuado relacionamento. O golpe atingiu fundo a
poetisa. Tanto que, a partir de então, tornaram-se cada vez mais freqüentes os
internamentos de Ingeborg em hospitais e até em manicômios. Ela entregou-se, de
vez, ao alcoolismo, misturando a bebida com doses exageradas de calmantes. Até
que, em 26 de setembro de 1973, veio o desfecho trágico.
A poetisa foi resgatada,
praticamente moribunda, mas ainda com vida, do banheiro em chamas de seu apartamento
em um hotel de Roma. Estava com horríveis queimaduras em cerca de 90% do corpo.
Ademais, apresentava inequívocos sinais de embriaguez. Tudo levava a crer que
ela havia posto fogo, propositalmente, no banheiro, com o intuito de se matar. Ainda permaneceu hospitalizada por vinte dias,
sem jamais recuperar a consciência. Morreu em 17 de outubro de 1973, chocando
seus milhões de admiradores.
Ingeborg Bachmann,
porém, embora apenas depois de morta, pôde “regressar” ao cenário de sua
infância, que ela tanto amava e que tanto exaltou em seus poemas, onde seus
restos mortais repousam. Ela jamais esqueceu o esplendor da natureza da sua
terra natal, depois de viajar por tantos e tantos lugares da Europa. Foi
sepultada em Klagenfurt, perto das três referências que mais a impressionaram
quando menina: “um campo, um rio e um lago”. Foi, reitero, felicíssima na
Literatura, sendo considerada uma das melhores escritoras em língua alemã do
século XX. Todavia, nunca teve a mesma sorte no amor, que conheceu, é verdade,
mas de cujas delícias não pôde gozar em decorrência de circunstâncias adversas.
Boa leitura.
O Editor.
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