“Noite Encantada”
* Por Mara Narciso
Traduzir em palavras não é difícil. É só escrever o que se sente.
Problemático é concretizar um sonho que não é só seu, mas também de muitas
outras pessoas, com parcos recursos técnicos e financeiros. Quando, após 35
minutos o show de dança Noite Encantada se acaba, três reclamações ficaram no
ar: desejo de que a peça tivesse começado no horário para ensinar regras às
crianças, que se fosse mais alta para poder ver o palco em toda a sua
plenitude, e que rebobinar a fita para rever as cenas de imediato fosse algo
possível. Fica a impressão de prazer incompleto, devido à fome não saciada dos
espectadores, despertada pela qualidade da própria dança.
Com entrada gratuita, e amparada pelo Ministério de Cultura e Prefeitura
de Montes Claros, a Ditarso Companhia de Dança fez uma apresentação cujo tema
foram os mitos e figuras folclóricas do Rio São Francisco. No gramado da Praça
de Esportes, numa noite estrelada, o público respondeu ao chamado e lotou o
local, sentando-se até no chão. O cartaz já sugeria a plasticidade do que se
veria em cena, pois a imagem mostrava figuras mitológicas que se emendavam umas
às outras de forma fluida, grudadas e se transmutando, indicando que os nossos
medos podem ser modificados ao sabor do pensamento.
A narração feita por uma voz feminina, algo rascante, como taquara
rachada, e parecendo vir do além, lembra a narradora dos disquinhos coloridos
infantis de antigamente. Ela conta que uma velha senhora, possuidora de um xale
que lhe conferia poderes sobrenaturais, tem muitos filhos e netos, e além de
parteira, conhece os mistérios da floresta. Após fazer a sua netinha dormir,
costuma sair pela noite. Mas um dia, a menina não dorme e acompanha a avó,
vendo-a bailar com seres de outro mundo, entre árvores que têm grandes olhos
vermelhos e espíritos vegetais que dançam frenéticos após a mata se aquietar.
Seres coloridos esvoaçantes vão saltitando, entrando e saindo de forma
ágil e misteriosa, entre os quatro troncos de árvores. Depois as personagens
vão se sucedendo, incluindo almas penadas com vestes andrajosas, que deslizam
pelo palco sobre rodinhas, num efeito de coisa sobrenatural, na maior
perfeição. A menina dança com elas, apenas com leve apreensão, porque no mundo
encantado, o medo é relativo. Três galináceos interagem com a menina, sendo
simpáticos em sua estética e simulação de dança. Fazem seu bailado de ave que
não voa, até surgir o Caipora, que, traiçoeiro, mata um deles. Mas, esta
personagem volta à vida, após ser submetida aos super-poderes de outro ser da
floresta.
Depois da meia noite, surge de terno azul claro listrado, o sétimo filho
de uma sequência só de homens. É uma figura estranha, que dança de forma
desengonçada. Ainda assim, mostra leveza e certo sofrimento. Vai e volta,
aparentemente sem uma razão, até surgir com sua vestimenta em farrapos.
Transmutou-se em Lobisomem. Ou ainda o canoeiro, navegando suave sobre as
águas do velho Chico, é a cena mais doce de todo o show. Vem de camisa branca e
chapéu. Ao aproximar-se de uma pedra, sob os raios da lua cheia, onde Iara
passa a noite penteando os longos cabelos, é atraído pelo canto mágico da
sereia, e ao aproximar-se para ouvi-la, é abraçado pela Mãe D’água, e nunca
mais é visto.
Uma moça calada, nunca saía de casa, nem mesmo para ir à missa. Vem pela
noite silenciosa, levando consigo uma lanterna, para clarear melhor o caminho,
e nele, encontra-se com um padre. Dançam por um tempo e quando o padre sai de
cena, a moça se contorce em desespero, mostrando imensa dor. A Mula-sem-cabeça
também faz sua aparição, soltando fogo pelas ventas, como se dizia antigamente.
É um fogo vermelho intenso, mas que não chega a assustar.
As luzes azuis sobre o palco iluminam o sonho e levam o público, em boa
parte infantil, a se encantar. A fumaça dá maior enlevo aos atores, que flutuam
como se os pés descalços fossem patins. Então, na cena final, a velha senhora
entrega seu xale para a neta, num gesto simbólico de passagem de poder, e
esconde-se atrás das árvores, que se unem e se fecham, sugerindo a morte da
anciã.
Com figurino, coreografia e música casados de forma siamesa, o mundo
mágico se desfaz quando a cortina se fecha. Encerrado o espetáculo, aos
espectadores, resta aplaudir de pé ao elenco pela capacidade de concretizar com
graça a imaginação de cada um. Com muita propriedade fizeram sonhar com as
figuras do folclore brasileiro. É preciso haver bis.
*Médica endocrinologista, jornalista
profissional, membro da Academia Feminina de Letras e do Instituto Histórico e
Geográfico, ambos de Montes Claros e autora do livro “Segurando a
Hiperatividade”
Que o bis da peça traga também um bis da resenha. Abraços, Mara.
ResponderExcluirObrigada, Marcelo, pela gentileza de sempre.
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