quarta-feira, 20 de novembro de 2013

“Noite Encantada”

* Por Mara Narciso

 Traduzir em palavras não é difícil. É só escrever o que se sente. Problemático é concretizar um sonho que não é só seu, mas também de muitas outras pessoas, com parcos recursos técnicos e financeiros. Quando, após 35 minutos o show de dança Noite Encantada se acaba, três reclamações ficaram no ar: desejo de que a peça tivesse começado no horário para ensinar regras às crianças, que se fosse mais alta para poder ver o palco em toda a sua plenitude, e que rebobinar a fita para rever as cenas de imediato fosse algo possível. Fica a impressão de prazer incompleto, devido à fome não saciada dos espectadores, despertada pela qualidade da própria dança.

Com entrada gratuita, e amparada pelo Ministério de Cultura e Prefeitura de Montes Claros, a Ditarso Companhia de Dança fez uma apresentação cujo tema foram os mitos e figuras folclóricas do Rio São Francisco. No gramado da Praça de Esportes, numa noite estrelada, o público respondeu ao chamado e lotou o local, sentando-se até no chão. O cartaz já sugeria a plasticidade do que se veria em cena, pois a imagem mostrava figuras mitológicas que se emendavam umas às outras de forma fluida, grudadas e se transmutando, indicando que os nossos medos podem ser modificados ao sabor do pensamento.

A narração feita por uma voz feminina, algo rascante, como taquara rachada, e parecendo vir do além, lembra a narradora dos disquinhos coloridos infantis de antigamente. Ela conta que uma velha senhora, possuidora de um xale que lhe conferia poderes sobrenaturais, tem muitos filhos e netos, e além de parteira, conhece os mistérios da floresta. Após fazer a sua netinha dormir, costuma sair pela noite. Mas um dia, a menina não dorme e acompanha a avó, vendo-a bailar com seres de outro mundo, entre árvores que têm grandes olhos vermelhos e espíritos vegetais que dançam frenéticos após a mata se aquietar.

Seres coloridos esvoaçantes vão saltitando, entrando e saindo de forma ágil e misteriosa, entre os quatro troncos de árvores. Depois as personagens vão se sucedendo, incluindo almas penadas com vestes andrajosas, que deslizam pelo palco sobre rodinhas, num efeito de coisa sobrenatural, na maior perfeição. A menina dança com elas, apenas com leve apreensão, porque no mundo encantado, o medo é relativo. Três galináceos interagem com a menina, sendo simpáticos em sua estética e simulação de dança. Fazem seu bailado de ave que não voa, até surgir o Caipora, que, traiçoeiro, mata um deles. Mas, esta personagem volta à vida, após ser submetida aos super-poderes de outro ser da floresta.

Depois da meia noite, surge de terno azul claro listrado, o sétimo filho de uma sequência só de homens. É uma figura estranha, que dança de forma desengonçada. Ainda assim, mostra leveza e certo sofrimento. Vai e volta, aparentemente sem uma razão, até surgir com sua vestimenta em farrapos. Transmutou-se em Lobisomem. Ou ainda o canoeiro, navegando suave sobre as águas do velho Chico, é a cena mais doce de todo o show. Vem de camisa branca e chapéu. Ao aproximar-se de uma pedra, sob os raios da lua cheia, onde Iara passa a noite penteando os longos cabelos, é atraído pelo canto mágico da sereia, e ao aproximar-se para ouvi-la, é abraçado pela Mãe D’água, e nunca mais é visto.

Uma moça calada, nunca saía de casa, nem mesmo para ir à missa. Vem pela noite silenciosa, levando consigo uma lanterna, para clarear melhor o caminho, e nele, encontra-se com um padre. Dançam por um tempo e quando o padre sai de cena, a moça se contorce em desespero, mostrando imensa dor. A Mula-sem-cabeça também faz sua aparição, soltando fogo pelas ventas, como se dizia antigamente. É um fogo vermelho intenso, mas que não chega a assustar.

As luzes azuis sobre o palco iluminam o sonho e levam o público, em boa parte infantil, a se encantar. A fumaça dá maior enlevo aos atores, que flutuam como se os pés descalços fossem patins. Então, na cena final, a velha senhora entrega seu xale para a neta, num gesto simbólico de passagem de poder, e esconde-se atrás das árvores, que se unem e se fecham, sugerindo a morte da anciã.

Com figurino, coreografia e música casados de forma siamesa, o mundo mágico se desfaz quando a cortina se fecha. Encerrado o espetáculo, aos espectadores, resta aplaudir de pé ao elenco pela capacidade de concretizar com graça a imaginação de cada um. Com muita propriedade fizeram sonhar com as figuras do folclore brasileiro. É preciso haver bis.

*Médica endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia Feminina de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico, ambos de Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”   


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