sexta-feira, 15 de novembro de 2013

Uma questão de cultura

* Por Rubem Costa

Viena estava em festa. Comemorava os 250 anos de nascimento de Wolfgang Amadeus Mozart. Fui ver. Uma cidade que respira cultura, em qualquer tempo a toda hora.

Provindo de todas as partes do mundo  ondas sucessivas de turistas transitam pelas avenidas e praças circundadas de edifícios seculares onde o gótico , o barroco e a herança greco-romana se confundem numa promiscuidade babélica de estilos. Palácios relembram os fastos do império enquanto monumentos e estátuas escrevem em granito e bronze a saga que, atravessando as idades perpetua Strauss, Shubert, Beethoven na memória dos homens, na história do mundo.

De quebra, contemplando a era da divulgação, Gutenberg se alteia imponente no meio da praça que tem o seu nome, segredando a descoberta da imprensa. Nos prédios, na catedral enegrecida pelo bombardeio da Segunda Grande Guerra, nas fiacres de dupla parelha deslizando pelas ruas centenárias, tudo é lembrança, em tudo há sempre uma história para contar;

O passado alimentando o presente. Lendas de reis, o romance de sissi e Francisco José que o cinema consagrou na interpretação de Romy Schneider e o eterno culto à arte que penetra na primícia da terra  e nos sonhos do homem. Duas aladas estátuas eqüestres  encimam o Teatro da Ópera di Estado que se eleva soberbo na “Ring”, principal área de circulação da cidade. É uma alusão mitológica que recorda a saga de Pégaso, nascido do sangue de Andrômeda, a princesa acorrentada por disputar com Cassiopéia a beleza. Cavalo de asas, cujo casco, ferindo a terra, fez brotar a fonte de Hipocrene, símbolo da inspiração poética.

Expressão de riqueza arquitetônica, o edifício é um templo à arte. Inaugurado com a ópera D. Juan de Amadeus, avultou a celebridade do gênio. Em cada desvão de rua, em cada esquina, brota por encanto a lembrança da Flauta Mágica. Além do monumento faustuoso erguido  no jardim municipal, a figura de Mozart  se espalha pela cidade inteira num momento de transe. Nas comemorações, não existia uma casa comercial que não a ostentasse como ornamentação de vitrine. Entrei para comprar chocolates e encontrei o retrato envolvendo bombons. Até num recanto de cutelaria, que vendia facas e fechaduras, descobri o gênio gloriosamente emoldurado junto à porta de entrada.

No Karntnerhof, modesto hotel do centro, cartazes expostos na sala de recepção anunciavam em abril a temporada musical de maio a outubro, ofertando programas das apresentações semanais (que ocorriam simultâneas  em teatros diferentes)  das orquestras : “Wiener Mozart”, “Konzert”; “Wiener Hofburg Orchester” e “Konzert in Mozarthaus”. Wolfgang Amadeus estampado em toda parte: nas ruas, nas casas e na mente do povo.

No palácio de Schonbrunn, em tela famosa pintada para homenagear a Imperatriz Maria Theresa (1717-1780), Martin van Meytens, numa suprema homenagem ao gênio, inseriu Mozart aos seis anos de idade ao lado dos grandes da corte. Um retrato que milhares olham, nem todos entendem.

Pois, foi ali, junto ao quadro, no meio de tanta gente, que me deparei com um baiano de Salvador que olhava enfadado a pintura. Por emulação, num ensaio de conversa, sem qualquer intenção de confronto, perguntei-lhe o que pensava sobre a obra de Carlos Gomes — autor de O Guarani - acrescentei. Meio confuso, sem saber ao certo do que eu falava, mas evidenciando profundo conhecimento futebolístico, respondeu-me de pronto, sem pestanejar: —“Lembro. O Guarani foi campeão do Brasil em 1978”. Humorismo à parte, desisti.  Decididamente, uma questão de cultura, ápice de vida que envolve educação, conhecimento, emoção e sentimento.

Assim, foi com surpresa que assisti à homenagem que, no aniversário da cidade, a Câmara Municipal (tão avessa às coisas do espírito quanto a prefeitura) prestou à Abal que é, como se sabe, sigla de uma entidade cultural que, na sua identificação de pessoa jurídica, traz expresso o nome do maior gênio musical da América Latina — “Associação Brasileira — Carlos Gomes — de Artistas Líricos”. Inserção nominativa que, em linguagem de advogado, permite defini-la como associação de esperanças, comprometida num contrato universal de intenção que abrange anseios presentes e futuros em busca da finalidade última que é a arte como expressão de felicidade.

Em linhas gerais, essa é a ilação que se recolhe da brilhante oração que Alcides Acosta, presidente da Abal, pronunciou em plenário. Avultando — a par de Guilherme de Almeida — a vida e a obra de Carlos Gomes, tracejou o projeto palpável da sociedade que dirige: — evidenciar por atos que, apesar da indiferença crônica do poder executivo, Campinas, a exemplo de Viena — (guardadas as proporções) também, no campo da música, respira cultura.

* Escritor e membro da Academia Campinense de Letras.


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