Uma questão de cultura
* Por
Rubem Costa
Viena estava em festa.
Comemorava os 250 anos de nascimento de Wolfgang Amadeus Mozart. Fui ver. Uma
cidade que respira cultura, em qualquer tempo a toda hora.
Provindo de todas as
partes do mundo ondas sucessivas de
turistas transitam pelas avenidas e praças circundadas de edifícios seculares
onde o gótico , o barroco e a herança greco-romana se confundem numa
promiscuidade babélica de estilos. Palácios relembram os fastos do império
enquanto monumentos e estátuas escrevem em granito e bronze a saga que,
atravessando as idades perpetua Strauss, Shubert, Beethoven na memória dos
homens, na história do mundo.
De quebra, contemplando
a era da divulgação, Gutenberg se alteia imponente no meio da praça que tem o
seu nome, segredando a descoberta da imprensa. Nos prédios, na catedral
enegrecida pelo bombardeio da Segunda Grande Guerra, nas fiacres de dupla
parelha deslizando pelas ruas centenárias, tudo é lembrança, em tudo há sempre
uma história para contar;
O passado alimentando o
presente. Lendas de reis, o romance de sissi e Francisco José que o cinema
consagrou na interpretação de Romy Schneider e o eterno culto à arte que
penetra na primícia da terra e nos
sonhos do homem. Duas aladas estátuas eqüestres encimam o Teatro da Ópera di Estado que se
eleva soberbo na “Ring”, principal área de circulação da cidade. É uma alusão
mitológica que recorda a saga de Pégaso, nascido do sangue de Andrômeda, a princesa
acorrentada por disputar com Cassiopéia a beleza. Cavalo de asas, cujo casco,
ferindo a terra, fez brotar a fonte de Hipocrene, símbolo da inspiração
poética.
Expressão de riqueza
arquitetônica, o edifício é um templo à arte. Inaugurado com a ópera D. Juan de
Amadeus, avultou a celebridade do gênio. Em cada desvão de rua, em cada
esquina, brota por encanto a lembrança da Flauta Mágica. Além do monumento
faustuoso erguido no jardim municipal, a
figura de Mozart se espalha pela cidade
inteira num momento de transe. Nas comemorações, não existia uma casa comercial
que não a ostentasse como ornamentação de vitrine. Entrei para comprar
chocolates e encontrei o retrato envolvendo bombons. Até num recanto de
cutelaria, que vendia facas e fechaduras, descobri o gênio gloriosamente
emoldurado junto à porta de entrada.
No Karntnerhof, modesto
hotel do centro, cartazes expostos na sala de recepção anunciavam em abril a
temporada musical de maio a outubro, ofertando programas das apresentações
semanais (que ocorriam simultâneas em
teatros diferentes) das orquestras :
“Wiener Mozart”, “Konzert”; “Wiener Hofburg Orchester” e “Konzert in
Mozarthaus”. Wolfgang Amadeus estampado em toda parte: nas ruas, nas casas e na
mente do povo.
No palácio de
Schonbrunn, em tela famosa pintada para homenagear a Imperatriz Maria Theresa (1717-1780),
Martin van Meytens, numa suprema homenagem ao gênio, inseriu Mozart aos seis
anos de idade ao lado dos grandes da corte. Um retrato que milhares olham, nem
todos entendem.
Pois, foi ali, junto ao
quadro, no meio de tanta gente, que me deparei com um baiano de Salvador que
olhava enfadado a pintura. Por emulação, num ensaio de conversa, sem qualquer
intenção de confronto, perguntei-lhe o que pensava sobre a obra de Carlos Gomes
— autor de O Guarani - acrescentei. Meio confuso, sem saber ao certo do que eu
falava, mas evidenciando profundo conhecimento futebolístico, respondeu-me de pronto,
sem pestanejar: —“Lembro. O Guarani foi campeão do Brasil em 1978”. Humorismo à
parte, desisti. Decididamente, uma
questão de cultura, ápice de vida que envolve educação, conhecimento, emoção e
sentimento.
Assim, foi com surpresa
que assisti à homenagem que, no aniversário da cidade, a Câmara Municipal (tão
avessa às coisas do espírito quanto a prefeitura) prestou à Abal que é, como se
sabe, sigla de uma entidade cultural que, na sua identificação de pessoa
jurídica, traz expresso o nome do maior gênio musical da América Latina —
“Associação Brasileira — Carlos Gomes — de Artistas Líricos”. Inserção
nominativa que, em linguagem de advogado, permite defini-la como associação de
esperanças, comprometida num contrato universal de intenção que abrange anseios
presentes e futuros em busca da finalidade última que é a arte como expressão
de felicidade.
Em linhas gerais, essa
é a ilação que se recolhe da brilhante oração que Alcides Acosta, presidente da
Abal, pronunciou em plenário. Avultando — a par de Guilherme de Almeida — a
vida e a obra de Carlos Gomes, tracejou o projeto palpável da sociedade que
dirige: — evidenciar por atos que, apesar da indiferença crônica do poder
executivo, Campinas, a exemplo de Viena — (guardadas as proporções) também, no
campo da música, respira cultura.
* Escritor e membro da Academia Campinense de
Letras.
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