Breve homenagem ao maestro José Menezes
* Por
Urariano Mota
Passei a manhã escrevendo para um futuro dicionário sobre a cidade do
Recife. Depois, ao começar esta coluna, fui surpreendido pela notícia da morte
do maestro José Menezes. Tal notícia mudou tudo. José Menezes foi, é compositor
de frevos, daqueles de carnaval tão tocados, tocantes e universais, que nem
parecem ter autoria.
O que lembrar dele? Quantas vezes nós cantamos, desde aqueles domingos
de encontros na casa do Gordo, o frevo Ingratidão? Roucos, arremedávamos “se eu
pudesse lhe daria o céu, a terra e o mar. Mandaria pratear toda a avenida, pra
ver você passar...”. Ou deveria lembrar os frevos-canções Terceiro Dia, A Casa
Cai, Boneca, É Assim?, Brinquedo Bom, É Madrugada, Fogo no Coração, Vai Pegar
Fogo, Tá Bom demais e Tá Faltando Alguém? Ou seria melhor Freio a Óleo?
Não sei. Daí que divulgo em primeira mão um trecho do que escrevi hoje
sobre carnaval para o futuro Dicionário do Recife, à maneira de homenagem ao
compositor de frevos José Menezes:
Já houve um tempo em que o carnaval do Recife era do Recife, somente do
Recife, e de mais ninguém ou mais nada. Em outras terras, tão distantes do povo
recifense quanto a China deve estar de Pernambuco, em outros lugares também
havia carnaval, é claro, o nosso gostoso isolamento não chegava à pretensão de
negar os carnavais de outras gentes. Mas o nosso carnaval, o do Recife, já
então era “o maior carnaval do mundo”. (Esse exagero pernambucano, uma
característica secular, bem merecia mais que um verbete, um livro inteiro entre
o cômico e o científico. Sem exagero. )
Com a chegada da televisão, descobrimos que havia carnavais mais caros e
luxuosos, como o do Rio de Janeiro. Mas então os mais lúcidos gritaram: “Isso
não é carnaval, é desfile”. E possuíam lá sua razão, porque do Rio se mostrava
apenas o luxo de Hollywood. O sucesso. Ora, quis uma longa tradição, que descia
do conflito entre burguesia e povo, casa-grande e senzala, que o carnaval do
Recife era, é ainda, na essência e identidade uma participação popular. Isso
queria dizer que em 4 dias, contados do sábado, o carnaval para o povo era
melhor que a praia. Era de todos, para todos, sem limite de raça, cor ou
classe.
Se na praia os suburbanos iam para ver mulher quase nua sob o sol, sob o
cheiro de mar e água salgada, no carnaval era mais: além de mulher seminua à
vontade, mais louca e generosa (mas nem tanto para o que sonhavam em fazer com
ela), havia música de gerar estouro em multidões (ver Frevo), e mais álcool e
mais luzes para a fantasia, que não tinha nome mais próprio para os disfarces
imaginados e libertos, na medida dos bolsos dos suburbanos.
Ora, naquele tempo e lugar, o carnaval era do Recife, somente do Recife,
do sábado até a terça-feira somente. Mas isso foi, não é mais. Olhem só que
coisa mais curiosa, ou como diria um popular mais lido, “que coisa mais
evolutiva”: o carnaval do Recife hoje começa em Olinda, e com várias semanas de
antecedência. Mas que coisa mais evolutiva, dizemos nós. Isso desde quando? O
difícil é apontar com certeza precisa quando essa antecipação em deslocamento
de lugar se deu. Sei, e sei pelo que lembro, que isso se deu a partir do
crescimento do carnaval de Olinda, que veio com os prefeitos Germano Coelho,
José Arnaldo e Luciana Santos. Por um lado, é claro que a manifestação popular
cresce a partir de janelas que o poder público lhe abre. E por outro, mostra
que esse carnaval quase deslocado se abriu para a juventude estudantil, mais à
esquerda, que não podia esperar o começo do frevo no sábado lá no Recife. Assim
foi, como uma ansiedade satisfeita pelos jovens, essa antecipação de tempo e
lugar.
E o que parecia uma intentona, realizou-se primeiro para a classe média,
depois para todos, com a classe média vestindo a fantasia de popular sem
camisa. Mas se o carnaval começa mais cedo em Olinda, por que é do Recife? Quem
vem de fora não sabe: para o recifense Olinda não é uma cidade, é um grande
subúrbio do Recife. Do Alto da Sé, ao ver o marzão azul e o cais do porto do
Recife, o recifense fala em silêncio, “o meu coração está lá e cá em dois
movimentos”. É um caso claro de bigamia. Por isso nos dizemos que Olinda começa
no Recife, entortando a história datada. É que a evolução econômica também muda
a história e a geografia. O carnaval do Recife começa todos os anos em Olinda,
mais cedo. Mas guarda a sua melhor história nos caboclinhos, nos maracatus, nos
clubes, nos blocos líricos do Recife que cantam “se eu pudesse lhe daria o céu,
a terra e o mar. Mandaria pratear toda a avenida, pra ver você passar”, e um
arrepio corre a multidão.
*
Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da
redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações
Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici e “Soledad no Recife”. Tem inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao
ensino em colégios brasileiros.
O melhor daquele carnaval é a espontaneidade, a improvisação, o autêntico e o verdadeiro. Até quem pensa não gostar, acaba gostando.
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