Aquela flor que tem espinho
* Por
José Ribamar Bessa Freire
Ela é antropóloga. Dar-lhe-ei o nome de Maria. Este não é o seu nome,
mas para preservar o anonimato, chamemo-la de Maria, aliás de Marta Maria, pois
a mesóclise e o pronome oblíquo suplicam por um nome composto. Melhor ainda:
chamemo-la, com aquele agá, de Martha Maria, minha amiga desde priscas eras,
quando éramos todos jovens e tínhamos memória de elefante. Participamos recentemente
de um seminário em Campo Grande (MS), organizado pela Universidade Católica e
ficamos hospedados no mesmo hotel. Foi uma alegria revê-la lépida e fagueira.
De noite, jantando uma canjinha de galinha, como convém na nossa idade -
embora Martha Maria seja mais jovem que eu - conversamos sobre o dramático
suicídio dos Guarani Kaiowá. Mencionei seu artigo escrito em 1987. Foi aí que
ela lembrou - quer dizer, "lembrou" é uma força de expressão - de
detalhes de outro texto sobre os Kaiowá, mas lhe fugia o nome do autor, seu
amigo antropólogo:
- O autor é o....o.... puxa, agorinha me deu um "branco"! Mas
é o...o... aquele austríaco que trabalhou no Xingu, na Guatemala, em Nicarágua,
no Paraguai e no Rio Negro, com quem estive tantas vezes! O artigo dele foi publicado
na revista Tempo e Presença em 1991. É o... você sabe quem é... como é o
nome dele?
Acontece que o "branco" de Martha Maria era contagioso, eu via
os traços fisionômicos do antropólogo, sua barba aparada, seu sorriso, mas o
nome também me fugia. Respondi:
- Eu sei... eu sei, ele esteve com a gente há dois anos no congresso em
Dourados. É o... o.... Eu sei quem é, é o marido da....da...daquela antropóloga
que acaba de organizar o livro monolingue Ñande Ypykuéra ñe'ẽngue.
- ... É. É isso mesmo, a mulher dele é a.... Como é mesmo o nome dela?
Não é possível que eu tenha apagado, cara! Minha memória está assim... as
lembranças voam como um passarinho. Agora são dois problemas: o nome dele e o
dela.
- Calma. Passarinhos voltam ao ninho. A gente já vai lembrar. Vamos
conversando, sem ansiedade, que os nomes hão de vir sozinhos - contemporizei.
Toucinho da Preta
Os nomes não vieram, embora a região cerebral onde estava armazenada a
outra parte da memória tenha funcionado a pleno vapor. Lembramos datas, referências
bibliográficas, a pesquisa etnográfica do austríaco com os Kaiabi, em 1966, sua
dissertação de mestrado defendida na Universidade de Viena, a publicação do
livro pelo Instituto Socioambiental, até a tradutora - Thekla Hartmann, o ano
da edição, os capítulos, incluindo as fotos que ele tirou no Rio dos Peixes.
Mas o nome que era bom, nada.
Tentei atenuar tamanha lacuna contando-lhe um incidente. Há alguns meses
o córtex entorrinal do meu cérebro bloqueou e deixou de transmitir para o
hipocampo o nome da minha sogra com quem vivi por mais de quarenta anos. É. É
isso mesmo. Esqueci por longos momentos o nome da minha sogra, o que não é tão
grave - me consolou Martha Maria - porque os Kuikuro, segundo nos disse o amigo
Mutuá, jamais mencionam o nome da sogra.
Os dois antropólogos, porém, não são nossos sogros e, por isso,
continuamos obcecados em busca da memória perdida. A conversa entrou por outros
caminhos, explorando temas diversos, mas aquilo ficou nos importunando, por
baixo dos panos, latejando como uma dor de dente. Já havíamos terminado a
canja, quando gritei com ar triunfante:
- Lembrei!
- Qual é o nome? - perguntou Martha, ansiosa.
- Calma! Só sei que o nome dele começa com "g".Já é um avanço,
é só buscar, agora, as outras letras.
Minha amiga se iluminou:
- É mesmo. Começa e termina com "g", o sobrenome também começa
e termina com "g". Tem uma combinação de vários "g".
Procuremos as letras entre os "g". Mas quais? Quais?
As letras do alfabeto são vinte e poucas, mas nem assim o nome veio. Retirei-me
para o meu quarto, pensando na combinação de letras, mas - oh caprichosa
memória que habita fora de nós e nos visita quando quer! - a palavra combinação
evocou na minha lembrança aquela peça do vestuário feminino que caiu em desuso.
Das minhas nove irmãs, oito vestiram combinação, anágua e corpete, na época em
que não se usava vestido forrado. Só uma, a mais nova, trocou a combinação pelo
shortinho curto e apertadinho de periguete do tipo daquele usado pela Valdirene
para atrair o Palhaço.
Desta forma, em vez de lembrar o que eu queria - os nomes esquecidos -
fui invadido por uma lembrança naquele momento impertinente: a imagem que
aflorava era a da Preta, minha irmã, nos anos 60, num domingo em que fomos
juntos à missa das oito em Manaus, no bairro de Aparecida. Ela vestia uma
combinação azul por baixo do vestido e quando passamos em frente à banca de
tacacá da dona Alvina, lá estava uma vizinha, a Leonor, que debochou:
- Olha o "toucinho", Preta!
"Toucinho" era aquela sobra da combinação ou da anágua que, às
vezes, por descuido, aparecia na barra da saia, ficando à mostra. No caso da
Preta não foi descuido. O defunto era maior. A combinação era da outra irmã
mais velha, Helena, que a havia usado na missa das sete. Mas o que é que o
"toucinho" da Preta tem a ver com o antropólogo austríaco? Sei lá.
Quem é que pode explicar os mistérios da memória? Mas, revenons à nos
moutons. Ou melhor: voltemos à vaca fria.
Farinha na cuia
No dia seguinte, Martha Maria e eu nos encontramos no café da manhã.
Conversávamos sobre a programação do dia quando fui interrompido por ela que,
num lampejo repentino, exclamou subitamente:
- Georg Grünberg!
Retruquei em cima da bucha, como se tivesse sido iluminado por um raio:
- Friedl Paz Grünberg!
Aleluia! Aleluia! Peixe no prato e farinha na cuia. Respiramos
aliviados: não estamos tão gagás assim. Nada como uma noite bem dormida para
recuperar a memória perdida.
Duas semanas depois, já em São Paulo, em outro evento, contei o episódio
para uma amiga comum, renomada antropóloga que trabalhou na Universidade de
Chicago. Para despistar, chamemo-la de Joaquina Cordeiro da Cunha. É que eu não
quero confusão jurídica com Roberto Carlos, Caetano Veloso e o movimento Procure
Saber que embarga biografias não autorizadas. Depois de ouvir a história da
Martha Maria, Joaquina me perguntou:
- Você conhece a piada do cara que perdeu a memória?
- É. Já ouvi, mas esqueci - respondi. Como é?
- Eu também esqueci - ela disse rindo.
Na manhã seguinte, quando nos encontramos os três, falei pra Martha:
- A Joaquina conhece uma história que nos interessa, mas disse que
esqueceu, não sei se por charme ou por esquecimento mesmo.
- Metade esquecimento, metade charme. Mas agorinha lembrei - ela disse e
passou a contar a história com muita graça, que aqui reproduzo em seus
detalhes, com total fidelidade, embora sem o mesmo encanto.
O nome da rosa
Era um advogado que andava perdendo a memória, esquecia nomes de coisas,
de pessoas íntimas, de amigos. Até que um dia confessou que não sabia mais o
que era "embargo infringente", o que toda a torcida do Flamengo
também desconhece, mas num jurista é grave. Soou o alarme. Numa decisão
monocrática, sua mulher o arrastou, então, ao médico, que lhe receitou uns
remédios. Um mês depois, o casal recebe em sua casa a visita de um amigo,
clarinetista da Banda da Polícia Militar, que reclama de falhas na memória. O
advogado lhe diz:
- Eu também estava assim, mas melhorei com um remédio fitoterápico que o
neurologista receitou.
- Ah, eu quero. Como é o nome do remédio? - implorou o clarinetista.
- Ih, sabe que eu esqueci! Mas vou lembrar. Me ajuda. Preciso lembrar o
nome de uma planta. Como é o título daquele livro do Umberto Eco cuja ação se
passa na Idade Média dentro de um monastério onde acontecem vários crimes
misteriosos? Fizeram até um filme com o Sean Connery.
- De livro e de filme eu não lembro, só de música, que faz parte do
campo da memória involuntária, inconsciente, que a gente guarda sem querer -
disse o clarinetista.
- Tudo bem. Então me diz - insistiu o advogado - como é o título daquele
samba de Nelson Cavaquinho, aquele que diz "Tire o seu sorriso do
caminho".
- Ah, É a flor e o espinho - falou o clarinetista.
- Isso mesmo! É isso - exclamou o advogado. - Flor e espinho. Me diz
agora como é mesmo o nome daquela flor que tem espinho?
- Espinho... espinho... É a rosa? - indagou o clarinetista.
- É ela! É a rosa! Obrigado.
Recuperada parte da memória, o advogado gritou para sua esposa que
estava na cozinha:
- Rosa, como é mesmo o nome daquele remédio que o médico me receitou?
As estratégias de recuperação da memória e os caminhos percorridos pela
mente podem ser esdrúxulos e tortuosos, mas funcionam. Recordei o poema Canção
de outono na primavera do nicaraguense Ruben Dario:
"Juventude, divino tesouro / estás indo para não mais voltar! /
Quando eu preciso lembrar, não lembro./ E às vezes lembro sem precisar".
Recordei mesmo? Que Dario me perdoe esta apropriação oportunista. Os
versos originais são:
"Juventud, divino tesoro / ¡ya te vas
para no volver! / Cuando quiero llorar, no lloro... / y a veces lloro sin
querer...
P.S. - Parte da colônia amazonense no Rio compareceu nesta sexta feira à
igreja Nossa Senhora do Monte do Carmo para o casamento de Hugo e Bibiane. Ele
é amazonense, filho de Hugo Silva Reis (sempre presente) e Renilda Cabral Reis.
Um senhor casamento! Não sou fofoqueiro, mas observei que ao lado de seus netos
certa viúva, cujas iniciais são RCB, não tirava o olho de um senhor
elegantérrimo de paletó cor de goiaba.
*
Jornalista e historiador
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