Companheira solitária
* Por
Marcelo Sguassábia
Cumprida a pena de 35 anos
na solitária, pelo assassinato coletivo de 48 velhotas cambojanas, Emiliano
Skud, também conhecido como O Perverso do Marrocos, surpreendeu a mídia
mundial com a insólita decisão de não abandonar seu cubículo escuro.
“Por estranho que possa
parecer, a solidão me proporcionou encontros memoráveis”, disse ele,
comunicando-se de dentro da cela para uma multidão de repórteres com os ouvidos
grudados à porta. “Fui finalmente apresentado a mim mesmo, e não estou disposto
a abrir mão do autoconhecimento que ganhei nesses anos todos. Nos primeiros
tempos, cada risquinho que fazia mentalmente nas paredes do meu cérebro eram os
dias já vencidos cumprindo pena. Depois, esses mesmos risquinhos ganharam outro
significado. Passaram a ser os dias ganhos nos meus mergulhos interiores de
regeneração. Foram momentos de proveitoso tédio, que jamais serão esquecidos. A
vida devassa que levei e os crimes que pratiquei nada mais eram que tentativas
de fugir da minha verdade e ouvir tudo o que o silêncio e a escuridão
precisavam me dizer”.
No decorrer dessas três
décadas e meia, Emiliano teria sido por quatro vezes beneficiado com o regime
de prisão semiaberto, por comportamento exemplar. Nunca se ouviu uma tosse, um
pigarro, um bocejo que fosse vindo do seu compartimento. Declinava de todas as
oportunidades de banho de sol no pátio do presídio e agradecia polidamente os
incontáveis indultos de Natal, recusando-se a usufruir do benefício.
Ao que se sabe, uma única
vez o ilustre detento rompeu a sua habitual e absoluta discrição. Há
aproximadamente sete anos, Skud acionou a campainha chamando o carcereiro, para
avisá-lo de que a goteira, instrumento de tortura psicológica, não estava mais
pingando. Solicitava providências para que se procedesse ao reparo o quanto
antes, pois sem ela não conseguia mais se concentrar em seus processos
meditativos. Argumentava ser a goteira um direito seu, previsto na condenação
assinada pelo juiz.
Sua conduta irrepreensível
muitas vezes colocava em situação embaraçosa os delegados e juízes diretamente
ligados ao seu caso. Certa ocasião, ao saber que seria levado à força para fora
da colônia penal, Emiliano Skud anunciou, via bilhete passado por debaixo da
porta da solitária, que praticaria um harakiri em frente às câmeras, no momento
em que cruzasse os limites da prisão. Contradição das contradições: a faca
conseguida por Emiliano, que todos os outros presos utilizariam para se
libertar da cadeia, seria uma arma para mantê-lo lá.
Sem outra alternativa, a
direção do presídio voltou atrás e decidiu mantê-lo em sua amada solitária. Foi
por essa época que ocorreu a Skud a ideia de usar sua faca para assassinar
alguns de seus colegas. O estratagema parecia perfeito: aceitaria finalmente
sair para um banho de sol matinal e consumaria a chacina, o que o manteria por
mais umas boas décadas em seu dolce far niente sombrio e gotejante.
Porém, caiu em si e lembrou-se a tempo do novo homem em que havia se
transformado. Deu um longo suspiro e mergulhou em sono profundo.
* Marcelo Sguassábia é
redator publicitário. Blogs: WWW.consoantesreticentes.blogspot.com
(Crônicas e Contos) e WWW.letraeme.blogspot.com
(portfólio).
Pode acontecer, e aconteceu comigo, mas deveria ser anti-natural simpatizar com um assassino de 48 pessoas. A resignação do presidiário é sedutora. Vá entender o motivo.
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