A ira dos panelenses
* Por Marco Albertim
A dor sacudiu o peito de João Cícero no mesmo instante em que o avião, num vôo raso, cobriu de sombra seu corpo magro; o corpo e a verdura dos marmeleiros nas duas margens da piçarra. Não tinha do que temer da chita desbotada da camisa; por isso, descoseu-a na altura do bolso, deixando cair um naco de doce de marmelo. O doce misturou-se à areia, mas o peito, ele o sofreou com o punho direito para o corpo não se desfazer no chão. Não durou dois minutos o transe. Ainda com a mão levantada, correu para sua casa, em Serra-Verde.
Passou cinco dias sem falar, sem comer. Com o fim da dor, sentindo o peito leve, mais leve que o susto súbito da sombra do avião, creu-se ungido de outro espírito. O pai, que proibira o uso da gamela para dar de comer aos porcos, assentando-a na mesa da cozinha, espreitando comida muita para a mulher e os filhos, logo distinguiu a fala de padre Cícero na voz gemida de João Cícero. “Louvado seja meu padim Ciço.”
João Cícero, de tão leve, correu pelas estradas, enviesando feito um cego nas curvas das piçarras. Também creu-se ungido, o pai, e logo espalhou na vizinhança a veia aconselhadora do filho. Amaro, também com Cícero no prenome, comprou um capote para o filho, porquanto ser vestimenta apropriada a sacerdotes.
Ouviu com untura nos olhos, os conselhos de João Cícero, indicações de rezas, penitências, novenas e reunião de casais separados.
O médico José Lucena, vindo de Panelas, assistindo às tumultuosas cerimônias na sala e no terreiro em frente à casa do divinatório, designou o episódio de surto de distúrbios psíquicos.
A fama de João Cícero chegou às poucas casas de alvenaria de Panelas. Os mais pobres acorreram a Serra-Verde. Susto houve entre os abastados, vendo tanta gente desgrenhada, emparelhada numa fé insana. O chefe de polícia de Panelas intimou João Cícero. Fora avisado por fazendeiros, pelo padre da paróquia, padre de batina preta, com autoridade de Roma. A intimação se deu em 25 de maio de 1936. João Cícero deu de ombros. Dia seguinte, Antônio Foguinho, seguidor da nova fé, foi preso. Conforme o delegado Ramiro, por portar arma de fogo. A arma, se houve, perdeu-se num armário gordurento da delegacia; gordurento, dizia-se, por causa das mãos suadas e gordas de Ramiro. Em 27 do mesmo mês da louvação, João Cícero, junto com mais 70 homens, percorreu os sítios vizinhos arrecadando armas. Não foi difícil juntar facas, bacamartes e foices; não para ele, que trouxera crença e esperança para o povo do ermo.
Conforme o delegado Ramiro diria no relatório, João Cícero jurara: “Agora vamos almoçar sangue!”
Em Gravatá Assu, no meio do percurso, atacaram a casa do inspetor de polícia. O inspetor reagiu com tiros de pistola, mas foi agarrado e morto a foiçadas. O mercado foi saqueado. Depois seguiram para a Vila de Cupira, onde Antônio Foguinho estava preso. No caminho, são atacados por um destacamento de polícia. Quarenta minutos de tiroteio, cinco mortos e três feridos do lado de Cícero. Entre a polícia, três feridos.
Antônio Foguinho nunca mais saiu da cadeia, ou foi enterrado por lá mesmo. João Cícero, com os seguidores, se dispersou. Não foram mais vistos.
*Jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem dois livros de contos e um romance.
A dor sacudiu o peito de João Cícero no mesmo instante em que o avião, num vôo raso, cobriu de sombra seu corpo magro; o corpo e a verdura dos marmeleiros nas duas margens da piçarra. Não tinha do que temer da chita desbotada da camisa; por isso, descoseu-a na altura do bolso, deixando cair um naco de doce de marmelo. O doce misturou-se à areia, mas o peito, ele o sofreou com o punho direito para o corpo não se desfazer no chão. Não durou dois minutos o transe. Ainda com a mão levantada, correu para sua casa, em Serra-Verde.
Passou cinco dias sem falar, sem comer. Com o fim da dor, sentindo o peito leve, mais leve que o susto súbito da sombra do avião, creu-se ungido de outro espírito. O pai, que proibira o uso da gamela para dar de comer aos porcos, assentando-a na mesa da cozinha, espreitando comida muita para a mulher e os filhos, logo distinguiu a fala de padre Cícero na voz gemida de João Cícero. “Louvado seja meu padim Ciço.”
João Cícero, de tão leve, correu pelas estradas, enviesando feito um cego nas curvas das piçarras. Também creu-se ungido, o pai, e logo espalhou na vizinhança a veia aconselhadora do filho. Amaro, também com Cícero no prenome, comprou um capote para o filho, porquanto ser vestimenta apropriada a sacerdotes.
Ouviu com untura nos olhos, os conselhos de João Cícero, indicações de rezas, penitências, novenas e reunião de casais separados.
O médico José Lucena, vindo de Panelas, assistindo às tumultuosas cerimônias na sala e no terreiro em frente à casa do divinatório, designou o episódio de surto de distúrbios psíquicos.
A fama de João Cícero chegou às poucas casas de alvenaria de Panelas. Os mais pobres acorreram a Serra-Verde. Susto houve entre os abastados, vendo tanta gente desgrenhada, emparelhada numa fé insana. O chefe de polícia de Panelas intimou João Cícero. Fora avisado por fazendeiros, pelo padre da paróquia, padre de batina preta, com autoridade de Roma. A intimação se deu em 25 de maio de 1936. João Cícero deu de ombros. Dia seguinte, Antônio Foguinho, seguidor da nova fé, foi preso. Conforme o delegado Ramiro, por portar arma de fogo. A arma, se houve, perdeu-se num armário gordurento da delegacia; gordurento, dizia-se, por causa das mãos suadas e gordas de Ramiro. Em 27 do mesmo mês da louvação, João Cícero, junto com mais 70 homens, percorreu os sítios vizinhos arrecadando armas. Não foi difícil juntar facas, bacamartes e foices; não para ele, que trouxera crença e esperança para o povo do ermo.
Conforme o delegado Ramiro diria no relatório, João Cícero jurara: “Agora vamos almoçar sangue!”
Em Gravatá Assu, no meio do percurso, atacaram a casa do inspetor de polícia. O inspetor reagiu com tiros de pistola, mas foi agarrado e morto a foiçadas. O mercado foi saqueado. Depois seguiram para a Vila de Cupira, onde Antônio Foguinho estava preso. No caminho, são atacados por um destacamento de polícia. Quarenta minutos de tiroteio, cinco mortos e três feridos do lado de Cícero. Entre a polícia, três feridos.
Antônio Foguinho nunca mais saiu da cadeia, ou foi enterrado por lá mesmo. João Cícero, com os seguidores, se dispersou. Não foram mais vistos.
*Jornalista e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”. Tem dois livros de contos e um romance.
Quando a ira dos renegados, miseráveis e marginais
ResponderExcluirse levanta contra o Estado e a sociedade que insistem em mantê-los na invisibilidade, não
há como não temê-los.
Me senti parte do texto por tanta riqueza de detalhes.
Abraços