terça-feira, 11 de janeiro de 2011




O amado fruto da discórdia

* Por Paulo Valença

1



Silvinha encontra-se com Neide, antiga colega de trabalho, de quando eram funcionárias da Indústria Minerva, hoje extinta e ante a perplexidade com o inesperado encontro, ela sorri:
- Mas... É você mesma Neide? Criatura você não envelhece não? Tás apenas mais gorda.
Neide também sorri e beijando-lhe a face, no cumprimento cordial:
- Pois é, Silvinha. Mas...
Afasta-se um pouco e após um rápido exame à amiga:
- Você também está conservada. Mas Silvinha, vamos fazer um lanche? Aí, a gente bate um papinho, lembrando aquele velho tempo.
- Tudo bem.
Com os olhos Silvinha procura uma mesa desocupada na lanchonete ao lado e, descobre-a no canto do estabelecimento à direita.
- Aquela mesa ali, Neide, no canto.
- Vamos lá.
Sorrindo ambas encaminham-se à porta do estabelecimento que é agitado por freqüentadores, na maioria jovens, que ocupam as mesas. E Silvinha se lembra de repente... No passado, lado a lado com Neide deixavam o setor-pessoal, onde trabalhavam e conversando encaminhavam-se à portaria adiante, onde carimbavam o cartão-de-ponto e saiam para a rua, para pegar o ônibus na calçada defronte. Eram jovens, viam o mundo sob um prisma diferente...
- Silvinha o que foi, engoliu a língua?
- Ah, não, não. Pensava naquele tempo de quando a gente trabalhava na Minerva.
- É, Silvinha, naquele tempo...
Adentram na lanchonete e logo, sentadas à mesa, uma defronte da outra, tornam a falar:
- Neide você se casou?
A amiga sorri, como se disfarçasse um segredo, desejasse se mostrar outra, superior ao que passou:
- Não, amiga. Tive umas paqueras. Nada sério. Pode ser que um dia, me “amarre” de verdade num cara. E você?
Silvinha então se ver naquela época, despedindo-se da colega:
- Neide, Gilberto tá no carro ali, me esperando.
- Sei. Vai lá. Não deixa ele esperar não.
- Até amanhã.
- Até. Divirta-se.
Sorrindo, ela dava-lhe as costas e se encaminhava ao automóvel prateado, com o homem forte, aguardando-a.
- Esperou muito?
- Nada. Entra amor.
Ela então aquiescia, abria a porta do auto, entrando e o carro partia veloz, para o jantar no Bairro de Boa Viagem e depois, para o motel à beira-mar. Quantas foram às noites assim, após o expediente? Quantas até que...
Sem esperar a resposta de Silvinha, Neide prática, acena a garçonete e se voltando, interrompe as reflexões da amiga:
- Vai querer o quê, menina? Eu vou pedir um sorvete duplo, de chocolate. E você?
- Também quero, mas, o meu vou querer de goiaba com nata.
Em volta, nas mesas, o som de vozes, risadas, tilintar de talheres e o arrastar de cadeiras se faz ouvir num som que sobe, domina o ambiente, enquanto a tarde vai passando, com as primeiras luzes acesas aqui e nos boxes circunvizinhos.
- Silvinha desculpe-me a indiscrição, mas, somos amigas há muito tempo... Você está casada? E aquele seu caso com o seu Gilberto como terminou? Pergunto por que eu saí primeiro da empresa antes que ela falisse e de lá para cá e, faz anos disso tudo, nunca mais tive notícias suas...
Silvinha foge os olhos, sem fitá-la, como se adquirindo coragem para dizer a verdade, e responde:
- Sim, sou casada, aliás, bem casada com o Amaro, um vendedor da firma da qual trabalho também como vendedora de terrenos. E o caso com o Gilberto não durou. Uma noite após um jantar, no motel, acabamos tudo. Foi tudo muito rápido. Eu era estouvada, mas, mantinha acima de tudo, a minha moral. Quero dizer, só fazia aquilo que eu julgava que não me ofendesse...
Faz uma pausa, como se buscasse força para continuar falando. Neide espera. Conveniente. Entendendo o desabafo dela, que torna a falar:
- Gilberto era amoroso, mas, machão demais e naquela noite me propôs lhe atender em suas taras sexuais e eu não aceitei. Julgei-me ofendida, como se me prostituindo e... Mandei ele pra o inferno!
Neide sorri, apoiando-a na resolução de antes, muito antes:
- Fez muito bem, Silvinha. Para tudo, há um limite, até para o amor!
- Pois é. Decepcionei-me com ele... Um crápula!
A garçonete se avizinha. Silvinha silencia e Neide faz o pedido. A moça se retira apressada, para logo retroceder, enquanto Silvinha e Neide se mantêm caladas.
- Aqui o solicitado.
Põe a bandeja sobre a mesa, entre as duas e, sorrindo:
- Desejam mais alguma coisa?
Silvinha então responde por ambas:
- Não. Por enquanto, não.
- Tudo bem.
Ausenta-se, retrocedendo ao balcão aos fundos do grande salão. As luzes acendem-se no teto branco. Das mesas prosseguem as risadas, o som das vozes e uma gargalhada, como num deboche.
Neide fita o rosto moreno, de traços corretos, a cabeleira longa, negra, os olhos brilhantes de Silvinha e reflete. Como lhe dizer (será que ela já sabe?) que seu Gilberto sofreu um derrame e que está semimorto num leito, sem falar? Que aquele homem grande, forte, bonito de outrora, não passa hoje de um velho se acabando aos poucos, de um mal sem retrocesso...
- Neide tás gostando do sorvete?
- Tou, eu adoro chocolate!
Pausa. As colherinhas buscam o sorvete nas taças. Os rostos de repente, estão sérios, como se pressentissem uma palavra que os despertassem como...
- Silvinha e depois que você e seu Gilberto terminaram o “caso”, se encontraram alguma vez?
Silvinha ergue o rosto e encarando o da amiga é, como sempre, sincera:
- Nunca mais. Soube que ele tinha se casado e que morava pra os lados de Prazeres.
Não, não revelará mais nada a Neide. Para tudo, há sim, o limite. A gente tem de se resguardar, se esconder. Para que lhe dizer que depois da discussão com o amante, dias depois fora demitida e que se encontrava grávida e o que passara em seguida, “descolocada”, buscando se empregar, amparar-se e ao filho que veria? Não. O Gilberto fora um crápula, dispensara-a como vingança por ela não lhe ter aceitado as taras, por se ver rejeitado como amante e seu superior na empresa... Ele era mesmo como ouvira de uma das funcionárias um dia lhe dizer, numa revelação para que ela se prevenisse contra uma inesperada traição:
- O homem usa as meninas e depois as descarta, com demissões da fábrica. O cara não quer assumir nenhum compromisso, quer apenas curtir. O que tem de bonito, tem de safado. Silvinha tenha cuidado! Tou lhe avisando.
O conselho. A decepção. O sofrimento. Mas, tudo passa. Será que Neide sabe alguma coisa sobre o Gilberto? Se ele realmente está casado, se ainda está residindo em Prazeres... Não, nada lhe perguntará. Melhor ignorar. Contudo, Neide sem se conter, termina por lhe revelar a realidade do que soube.
- Amiga me perdoei por lhe ter contado tudo isso, mas, creio que você não ligará... Afinal, ele não significa mais nada para você, pelo contrário, você mesma o enxotou de sua vida.
Gilberto no leito. Paraplégico. Dependendo de uma enfermeira, já que a própria esposa evita-o, numa reação ao que provavelmente sofreu de quando ele era sadio, que a maltratava, que...
- Entendo. E até que lhe agradeço por me contar tudo isso... É Neide, assim é a vida, com suas cobranças, castigos! Mas, vamos indo?
- Vamos.
Erguem-se. A garçonete então se achega.
- Quanto devemos, mocinha?
Paga a despesa, as duas saem, retornando à vida de antes do encontro. Sim, afinal, a vida prossegue.

2


Chega a casa.
Em passos cautelosos segue ao quarto, onde a criança de nove anos está no leito, dormindo. Aproxima-se, sentindo o bem-estar em se saber mãe e que a filha está adormecida, protegida.
O rostinho de lado, no travesseiro, de traços corretos, os cabelos lisos, longos, castanhos, a pele morena, os braços cheios, o corpo bem definido, muito parecido com o do pai, que hoje está num leito, se acabando...
Enverga-se e beija a face morninha da menina, o amado fruto da discórdia.


* Paulo Valença é autor paraibano, com livros de ficção premiados nacionalmente; Verbete do Dicionário Biobibliográfico de Escritores Contemporâneos; Verbete da Enciclopédia de Literatura Contemporânea; Membro de várias instituições literárias; Presente em diversos sites; Reside em Recife/PE.

Um comentário:

  1. O que ontem foi discórdia, gerou um fruto.
    Que nada deve ao passado.
    Adorei.
    Abraços

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