quarta-feira, 5 de janeiro de 2011




Mergulho no sertão

* Por Mara Narciso

No calor da debandada do Complexo de Favelas do Alemão, pode-se imaginar os diálogos durante a fuga. Quem já viu flagrantes captados pelos repórteres, é capaz de deduzir o que se passou, e como deve ser o modo de falar dos fugitivos. Alguém se habilita a escrever um possível diálogo?
Escrever a linguagem falada, para ter um mínimo de autenticidade e realismo é um desafio maior do que parece. Então imagine escrever 606 páginas de emoção, ação e filosofia? João Guimarães Rosa fez isso em Grande Sertão: Veredas. Precisa muito atrevimento para, como leiga, escrever alguma coisa minimamente prestável sobre uma obra tão estudada quanto magnífica. Mas não vou guardar para mim a delícia proporcionada por essa leitura obrigatória. Morando no sertão mineiro, retratado no livro, senti que mergulhei numa verdadeira época sem lei.
O dialeto recriado pelo autor remete os atuais viventes do local aos tempos remotos, anteriores às lembranças do convívio com gente sem estudo, que se exprimia com uma força, agora sei, de encantar. Palavras enterradas há décadas são ressuscitadas, dando à vida no Norte de Minas um significado que ninguém deu.
Guimarães Rosa construiu um sertão maior do que ele foi, e pelas pernas dos cavalos dos seus personagens rodou por todos os recantos, passando perto de cidades como Januária, São Francisco, Juramento, Itacambira, Corinto. Tinha um personagem referido como Montesclarense, mas não fala em Montes Claros e nem no pequi, embora fale o tempo todo em buriti, desde a árvore, a palha nos telhados das casas, seu fruto e seu doce.
A vida de hoje, com as necessidades criadas pela civilização, se vê perplexa diante do despojamento das pessoas que moram em cima de um cavalo, tendo como bagagem a roupa do corpo, o alforje e as armas. A viagem dura anos, não há destino certo e nem motivo claro para a jornada. A natureza é exuberante, oposta ao imaginado. Cada palmo do sertão do Norte de Minas é mostrado com tal força que remete ao local, feito um filme.
A sabedoria de Riobaldo, o narrador, nas letras de um senhor, que escuta a sua história, mostra conhecimento profundo da alma humana, dos sentimentos e das necessidades de cada um. Tem uma visão e linguagem tão peculiares, que mesmo com sua maneira, algumas vezes incompreensível, com palavras inventadas ou em desuso, ou usadas num outro sentido, torna a leitura um desafio, e por isso mesmo mais lucrativa.
Riobaldo ensina sabiamente sobre fauna, flora, gente, economia, pontos cardeais, meteorologia, astronomia, comportamento, táticas de guerra, medicina, psicologia e outros. O homem convence de que está do lado do bem, e que matar sem motivo é aceitável.
O declarado amor dito em todo o percurso da viagem, mas sem nunca ter sido falado ao interessado, o seu colega de caminhada Diadorim, é um fato inusitado e atraente. Imagina-se que hoje Diadorim não seria mulher, - revelação das últimas páginas, mas conhecida por todos devido ao especial da Rede Globo -, mas sim um homem mesmo. A doçura desse amor no meio da guerra é irrepreensível. Um jagunço rude, abarrotado de primitivismo, cujas maiores virtudes são a coragem de desafiar a morte e manejar um revolver com primazia, contrasta com esse amor proibido, cuja natureza é explicada com surpreendente delicadeza.
O palavreado convincente mantém um ritmo gostoso, feito música, tão bom e impregnante, que vai aguçando o leitor que pode se pegar pensando na mesma linguagem de Riobaldo. Este acaba por se tornar líder do bando, umas boas dezenas de jagunços. Os capangas não passam de matadores cruéis, descritos com motivações peculiares, mas que são de fato cangaceiros. As pequenas causas e as vinganças acabam sendo a razão das mortes matadas. O grupo é uma horda de assassinos, frios e bons de bala; um grupo que oprime, aterroriza, e se parece com os cowboys americanos.
O deleite proporcionado pela leitura lenta e curtida frase a frase, com releituras, é prazer para dias. O bom mesmo é ter acesso a livros significativos como este, que é envolvimento, é prazer, é satisfação do começo ao fim, período em que se adentra no tempo e no cerrado, vendo e vivendo tudo pela narrativa escandalosamente verossímil do personagem.
É tão genial, que me recolho à minha insignificância, e digo que não disse nada. Ler Grande Sertão: Veredas me fez calada, mas não me impediu de vir falar da felicidade que foi lê-lo.

* Médica, jornalista e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”.

7 comentários:

  1. Grande Sertão é uma obra
    encantada capaz de extrair
    de quem o lê, textos tão
    bem escritos quanto este.
    Parabéns.
    Abraços

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  2. Um atrevimento muito bem-vindo, Mara! O autor não escreveu para ser estudado e sim para encantar. Beleza de texto, o seu! Beijos.

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  3. "Riobaldo ensina sabiamente sobre fauna, flora, gente, economia, pontos cardeais, meteorologia, astronomia, comportamento, táticas de guerra, medicina, psicologia e outros..."

    Grande Sertão: Veredas é caracterizado por insólita riqueza de linguagem e profundidade psicológica. Guimarães Rosa com muitos anos de experiência e estudo adquiridos na medicina, era de se esperar "a sabedoria de Riobaldo" e dos seus personagens, retratando, como você bem disse: "Cada palmo do sertão do Norte de Minas é mostrado com tal força que remete ao local, feito um filme."
    Beleza de texto, Mara!
    Parabéns.

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  4. Núbia, Evelyne e José Calvino, adorei os comentários de vocês, quase tanto quanto ler o livro. Pedro, a foto de Bruna Lombardi fechou com o texto. Muito obrigada gente!

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  5. Que maravilha de mergulho. Já me embrenhei por Sagarana, Primeiras Estórias e Noites do Sertão. Tenho o Grande Sertão na estante, aguardando o seu momento. Quero o vagar necessário a um desfrute como o seu - que você tão bem narrou neste texto delicioso. Parabéns, Mara. E um 2011 de promissoras veredas para você.

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  6. Mara,

    O post anterior é meu. Utilizei o computador do meu sobrinho, que também tem conta no blogger. Daí a confusão. Um beijo pra você.

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  7. Marcelo,
    Li Sagarana quando menina e ainda assim, sem recursos para uma apreciação mais madura, gostei muito do livro. Agora, no Grande Sertão: Veredas decidi fazer uma viagem lenta, uma leitura frase a frase, com direito a reflexõs e questionamentos.
    Obrigada pela sua participação e incentivo.

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