As unhas vazam-lhe a alma
* Por Eduardo Murta
A alegação ao delegado soou, se não tosca, com ar de delírio. Então, pediu que a repetisse. Era aquilo mesmo: fazia o que de mal lhe imputavam tão-somente nos instantes em que o coração deixava de pulsar. Eram fragmentos fortuitos, assegurava. E nada mais. Depois que se recobrava daqueles instantes em que a ausência de humanidade lhe transbordava os poros, era de novo gente admirável. Destas de regar plantas, dar de beber a gatos e cachorros, buscar pão, lavar a roupa da vó no tanque.
O desacerto estava no desvão, no momento sinistro em que algo o convidava a namorar a escuridão. E os mergulhos eram profundos. Beijar corpos femininos em velórios solitários no Parque da Colina. Se apresentar, cabelo lambuzado em gel, para o amor com as velhinhas na fila do INSS. Julgava gesto humanitário, até. Não cobrava um centavo sequer. E pelas mortes, bem, pelas mortes não poderia se responsabilizar. Era a mão do destino, simplificava.
Estariam naquela cota, como detalharia em depoimento, dos milésimos de segundo em que o batimento cardíaco pedia uma pausa. E pronto. Uma força descomunal e incontrolável dele se apossava. Sem remédio. Quando retomava pé da situação, a visita já cessara de respirar. Pelos cálculos dos detetives Gabi e Calaes, o caso já somava 21 aposentadas e oito pensionistas. Todas mortas assim pelo nada. Nem um tostão de suas economias fora subtraído.
Um só item, creiam, Ligúrio instituíra como souvenir. É seu quartinho barato de pensão do Centro cheirando a mofo que revelaria o conjunto de dentaduras enfileiradas na estante diante da cama. Dera explicação desconcertante para o desvio. Precisava de alguém que lhe sorrisse a qualquer tempo. Daí as arcadas em posição original e, por gratidão, relatara à polícia, escovadas religiosamente todos os dias.
Haveria que se entender com seus demônios por aquilo. Ainda que tentasse compensar tudo com espasmos primaveris. Confessara candidamente que adotara um cercadinho dando fundo para a Mata da Baleia como repouso aos corpos. Que sobre eles houvera assentado terra vegetal, esterco (orgânico!!), e salpicado sementes de lírios, gerânios e girassóis. Que, por ironia, ramos daquele jardim estavam entre as formas para atrair parte das vítimas.
As velhotas eram seduzidas em vários estágios. O primeiro, da delicadeza. Em seguida, envolvidas à base de licor de laranja. Boleros mexicanos e discos de Roberto Carlos chiando no vinil viriam mais tarde. A dança de rosto colado... Presas fáceis. Só horas à frente, com o mundo se convertendo turvo, o efeito dos remédios fazendo as imagens míopes, é que lhes batia o desespero aterrador. O ar rarefeito, exíguo. Um vão brusco. Foi exatamente o que sentiu e pressentiu Ligúrio naquela manhã de fila no posto previdenciário.
Os olhos de Dona Lucrécia revelando um algo mais, reforçou a convicção. Não poderia perdê-la. Figura emblemática. Sombrinha tamanho família, bengala em carvalho, terninho de grife. Enxuta, em corpinho de 70. Adentrando o quartinho de pensão, foi se desfazendo do sapato, da meia-calça. Varou além do licor. Provou do gim, da tequila e do Martini. Se precaveu, ela mesma servindo. E desconfiou fundo da história de que aquelas dentaduras enfileiradas eram mero hobby de protético. E de que as anáguas no cabideiro seriam relíquia da bisavó.
Contou, num repente, que tinha algo a revelar ao conquistador. Pediu privacidade no banheiro, a que se trocasse. Ele se desmanchando, esperando cafunés na alma. Qual nada! Arrancou da bolsa as roupas vermelhas de travesti imitando diaba, o par de chicotes às mãos e se apresentou: consulesa do capeta, coletora de almas. Ele perdendo os sentidos, acordando com os pulsos algemados. E ainda sem saber se o que vivera ali fora miragem ou mero soluço do prazer. Duas unhas postiças cravadas às costas e as contas a acertar com seus demônios seriam o bastante para trazer seus pés de volta ao chão.
* Jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa e “Minhas condolências à senhora Vera”, lançado em dezembro de 2010, com 50 contos. Publicou, também, em parceria, o livro “Galo – uma paixão centenária”. Já teve passagens pelos jornais Diário de Minas, Estado de Minas e Hoje em Dia, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas pioneiros, e mais aplaudidos do Literário.
* Por Eduardo Murta
A alegação ao delegado soou, se não tosca, com ar de delírio. Então, pediu que a repetisse. Era aquilo mesmo: fazia o que de mal lhe imputavam tão-somente nos instantes em que o coração deixava de pulsar. Eram fragmentos fortuitos, assegurava. E nada mais. Depois que se recobrava daqueles instantes em que a ausência de humanidade lhe transbordava os poros, era de novo gente admirável. Destas de regar plantas, dar de beber a gatos e cachorros, buscar pão, lavar a roupa da vó no tanque.
O desacerto estava no desvão, no momento sinistro em que algo o convidava a namorar a escuridão. E os mergulhos eram profundos. Beijar corpos femininos em velórios solitários no Parque da Colina. Se apresentar, cabelo lambuzado em gel, para o amor com as velhinhas na fila do INSS. Julgava gesto humanitário, até. Não cobrava um centavo sequer. E pelas mortes, bem, pelas mortes não poderia se responsabilizar. Era a mão do destino, simplificava.
Estariam naquela cota, como detalharia em depoimento, dos milésimos de segundo em que o batimento cardíaco pedia uma pausa. E pronto. Uma força descomunal e incontrolável dele se apossava. Sem remédio. Quando retomava pé da situação, a visita já cessara de respirar. Pelos cálculos dos detetives Gabi e Calaes, o caso já somava 21 aposentadas e oito pensionistas. Todas mortas assim pelo nada. Nem um tostão de suas economias fora subtraído.
Um só item, creiam, Ligúrio instituíra como souvenir. É seu quartinho barato de pensão do Centro cheirando a mofo que revelaria o conjunto de dentaduras enfileiradas na estante diante da cama. Dera explicação desconcertante para o desvio. Precisava de alguém que lhe sorrisse a qualquer tempo. Daí as arcadas em posição original e, por gratidão, relatara à polícia, escovadas religiosamente todos os dias.
Haveria que se entender com seus demônios por aquilo. Ainda que tentasse compensar tudo com espasmos primaveris. Confessara candidamente que adotara um cercadinho dando fundo para a Mata da Baleia como repouso aos corpos. Que sobre eles houvera assentado terra vegetal, esterco (orgânico!!), e salpicado sementes de lírios, gerânios e girassóis. Que, por ironia, ramos daquele jardim estavam entre as formas para atrair parte das vítimas.
As velhotas eram seduzidas em vários estágios. O primeiro, da delicadeza. Em seguida, envolvidas à base de licor de laranja. Boleros mexicanos e discos de Roberto Carlos chiando no vinil viriam mais tarde. A dança de rosto colado... Presas fáceis. Só horas à frente, com o mundo se convertendo turvo, o efeito dos remédios fazendo as imagens míopes, é que lhes batia o desespero aterrador. O ar rarefeito, exíguo. Um vão brusco. Foi exatamente o que sentiu e pressentiu Ligúrio naquela manhã de fila no posto previdenciário.
Os olhos de Dona Lucrécia revelando um algo mais, reforçou a convicção. Não poderia perdê-la. Figura emblemática. Sombrinha tamanho família, bengala em carvalho, terninho de grife. Enxuta, em corpinho de 70. Adentrando o quartinho de pensão, foi se desfazendo do sapato, da meia-calça. Varou além do licor. Provou do gim, da tequila e do Martini. Se precaveu, ela mesma servindo. E desconfiou fundo da história de que aquelas dentaduras enfileiradas eram mero hobby de protético. E de que as anáguas no cabideiro seriam relíquia da bisavó.
Contou, num repente, que tinha algo a revelar ao conquistador. Pediu privacidade no banheiro, a que se trocasse. Ele se desmanchando, esperando cafunés na alma. Qual nada! Arrancou da bolsa as roupas vermelhas de travesti imitando diaba, o par de chicotes às mãos e se apresentou: consulesa do capeta, coletora de almas. Ele perdendo os sentidos, acordando com os pulsos algemados. E ainda sem saber se o que vivera ali fora miragem ou mero soluço do prazer. Duas unhas postiças cravadas às costas e as contas a acertar com seus demônios seriam o bastante para trazer seus pés de volta ao chão.
* Jornalista, autor de "Tantas Histórias. Pessoas Tantas", livro lançado em maio de 2006, que reúne 50 crônicas selecionadas publicadas na imprensa e “Minhas condolências à senhora Vera”, lançado em dezembro de 2010, com 50 contos. Publicou, também, em parceria, o livro “Galo – uma paixão centenária”. Já teve passagens pelos jornais Diário de Minas, Estado de Minas e Hoje em Dia, além de Folha de S.Paulo e revista Veja. É um dos colunistas pioneiros, e mais aplaudidos do Literário.
Que criatividade! Como o ser humano pode se revelar estranho...gostei muito do conto, com um final surpreendente.
ResponderExcluirAbraços
O improvável pode acontecer.
ResponderExcluirUma narração onde o leitor se deixa conduzir
e surpreende a todos no final.
Abraços
O dia da caça também chega. Bem feito para ele. O castigo apenas começou. Rico personagem Eduardo.Final com a sua marca.
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