A arte chuta o racismo
* Por Mara Narciso
A dor de quem é vítima do preconceito racial dilacera o que se tem de mais íntimo: o amor-próprio. Um forte aperto engasgado no peito faz sangrar por dentro, sobe para a garganta e chega aos dentes, então muda para as costas, rasga as entranhas, divide o corpo ao meio e revela: as vísceras humanas são iguais em todas as latitudes.
Aconteceu o “Salão Internacional de Humor Contra o Racismo”. O que pode haver de engraçado no preconceito ou no desprezo que uma pessoa tem pela outra? Humilhar o diferente e ainda procurar palavras de piedade, resgatando frases como: ele não tem culpa de ser preto!
É preciso um pouco de raiva para falar do racismo. E também de muita inteligência para ver tudo que mostra o Salão Internacional de Humor, cuja chamada era “Vamos dar as mãos contra o racismo”, e esteve no Montes Claros Shopping Center nos dias 28, 29 e 30 de outubro de 2010.
A esplêndida estética do ambiente da mostra, com cortinas multicoloridas indo do teto ao chão, escancara que o mundo tem muitas cores, e que temos de conviver com todas elas. Os cartuns, escolhidos por um júri, foram colocados em divisórias cruzadas, pintadas de branco, com oito trabalhos em cada uma delas. Os cartazes, coloridos em sua maior parte, outros em preto e branco, impactam o visitante, exigem atenção, e como não são óbvios, pedem raciocínio. Boa parte chama o riso, impõe reflexão, emociona pelo absurdo que é um ser humano menosprezar o outro, considerado inferior.
O comportamento de gente pode ser chocante, e os cartuns batem na nossa cara, estapeiam a nossa indiferença, espancam a nossa burrice, e deflora as consciências mundiais. Ao final, um grito mudo dá pontapés na mesquinhez da nossa insignificante humanidade.
Cachorrinhos, sendo um branco e outro preto, se cruzam e dão origem a filhotes pintadinhos; o negro ganha o primeiro lugar, mas no pódio, o degrau do meio é um buraco, para deixá-lo abaixo dos outros pior colocados; o poderoso abraça o negro pobre, mas na sua capa pseudoprotetora há um alvo sobre as costas do outro; a criança negra, filha da empregada, recebe de presente, disfarçada com um laço de fita uma vassoura; são três presentes para três crianças: a branca recebe livros, a amarela recebe computador e a negra recebe bola.
No centro da arena, uma lata de tinta branca tem o nome da exposição, e dela sai uma mão preta com os cinco dedos, sendo cada um de uma cor. Há trabalhos de cartunistas brasileiros e de várias nacionalidades, especialmente de lugares conflagrados em ferozes lutas étnicas. Eles sentem na carne o que desenham.
Konstantin Christoff, médico e artista plástico, foi o primeiro cartunista de Montes Claros, e alguns dos seus trabalhos estavam lá, numa digna homenagem ao artista.
As mensagens dos cartuns são sutis e fortes simultaneamente. Muitas delas funcionam como murros no estômago. Descreio de que alguém cruze a linha de chegada, passando pelos trabalhos, sem sentir o horror da própria imbecilidade. Porque, para além do racismo, há quem se sinta melhor do que o outro.
Um trabalho emblemático mostra três caveiras idênticas, tomando banho sob chuveiros, com sabão e escova, enquanto as suas peles, uma de cada cor, estão dependuradas em ganchos, esperando a finalização da limpeza. Noutro cartum um adepto do Ku Klux Klan pinta de branco a própria sombra.
Na parte lateral da mostra, há uma escultura do Mestre Yoda, representante do Bem na série Guerra nas Estrelas, que estando amarrado, é açoitado por um soldado do Mal. Um cartaz ao lado explica que há décadas, filmes mostram que o Bem deve vencer o Mal, e que a aparência dos seres é fator secundário.
A imagem mais tocante foi de uma ama de leite negra, amamentando duas crianças brancas e gordas em seus fartos seios, enquanto o próprio filho, negro e esquelético suga o que sobra para ele: uma chupeta de borracha. Essa pérola do racismo foi primorosamente criada pelo nosso cartunista maior, o montes-clarense Márcio Leite, criador do Brazil Cartoon e organizador da exposição.
Caso esse tipo de consciência invadisse a humanidade, muitas guerras acabariam. Sem motivos raciais e com possível tolerância religiosa, não mais a cor da pele seria motivo para disputas. Restariam para isso o petróleo e a água.
* Médica, jornalista e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”.
* Por Mara Narciso
A dor de quem é vítima do preconceito racial dilacera o que se tem de mais íntimo: o amor-próprio. Um forte aperto engasgado no peito faz sangrar por dentro, sobe para a garganta e chega aos dentes, então muda para as costas, rasga as entranhas, divide o corpo ao meio e revela: as vísceras humanas são iguais em todas as latitudes.
Aconteceu o “Salão Internacional de Humor Contra o Racismo”. O que pode haver de engraçado no preconceito ou no desprezo que uma pessoa tem pela outra? Humilhar o diferente e ainda procurar palavras de piedade, resgatando frases como: ele não tem culpa de ser preto!
É preciso um pouco de raiva para falar do racismo. E também de muita inteligência para ver tudo que mostra o Salão Internacional de Humor, cuja chamada era “Vamos dar as mãos contra o racismo”, e esteve no Montes Claros Shopping Center nos dias 28, 29 e 30 de outubro de 2010.
A esplêndida estética do ambiente da mostra, com cortinas multicoloridas indo do teto ao chão, escancara que o mundo tem muitas cores, e que temos de conviver com todas elas. Os cartuns, escolhidos por um júri, foram colocados em divisórias cruzadas, pintadas de branco, com oito trabalhos em cada uma delas. Os cartazes, coloridos em sua maior parte, outros em preto e branco, impactam o visitante, exigem atenção, e como não são óbvios, pedem raciocínio. Boa parte chama o riso, impõe reflexão, emociona pelo absurdo que é um ser humano menosprezar o outro, considerado inferior.
O comportamento de gente pode ser chocante, e os cartuns batem na nossa cara, estapeiam a nossa indiferença, espancam a nossa burrice, e deflora as consciências mundiais. Ao final, um grito mudo dá pontapés na mesquinhez da nossa insignificante humanidade.
Cachorrinhos, sendo um branco e outro preto, se cruzam e dão origem a filhotes pintadinhos; o negro ganha o primeiro lugar, mas no pódio, o degrau do meio é um buraco, para deixá-lo abaixo dos outros pior colocados; o poderoso abraça o negro pobre, mas na sua capa pseudoprotetora há um alvo sobre as costas do outro; a criança negra, filha da empregada, recebe de presente, disfarçada com um laço de fita uma vassoura; são três presentes para três crianças: a branca recebe livros, a amarela recebe computador e a negra recebe bola.
No centro da arena, uma lata de tinta branca tem o nome da exposição, e dela sai uma mão preta com os cinco dedos, sendo cada um de uma cor. Há trabalhos de cartunistas brasileiros e de várias nacionalidades, especialmente de lugares conflagrados em ferozes lutas étnicas. Eles sentem na carne o que desenham.
Konstantin Christoff, médico e artista plástico, foi o primeiro cartunista de Montes Claros, e alguns dos seus trabalhos estavam lá, numa digna homenagem ao artista.
As mensagens dos cartuns são sutis e fortes simultaneamente. Muitas delas funcionam como murros no estômago. Descreio de que alguém cruze a linha de chegada, passando pelos trabalhos, sem sentir o horror da própria imbecilidade. Porque, para além do racismo, há quem se sinta melhor do que o outro.
Um trabalho emblemático mostra três caveiras idênticas, tomando banho sob chuveiros, com sabão e escova, enquanto as suas peles, uma de cada cor, estão dependuradas em ganchos, esperando a finalização da limpeza. Noutro cartum um adepto do Ku Klux Klan pinta de branco a própria sombra.
Na parte lateral da mostra, há uma escultura do Mestre Yoda, representante do Bem na série Guerra nas Estrelas, que estando amarrado, é açoitado por um soldado do Mal. Um cartaz ao lado explica que há décadas, filmes mostram que o Bem deve vencer o Mal, e que a aparência dos seres é fator secundário.
A imagem mais tocante foi de uma ama de leite negra, amamentando duas crianças brancas e gordas em seus fartos seios, enquanto o próprio filho, negro e esquelético suga o que sobra para ele: uma chupeta de borracha. Essa pérola do racismo foi primorosamente criada pelo nosso cartunista maior, o montes-clarense Márcio Leite, criador do Brazil Cartoon e organizador da exposição.
Caso esse tipo de consciência invadisse a humanidade, muitas guerras acabariam. Sem motivos raciais e com possível tolerância religiosa, não mais a cor da pele seria motivo para disputas. Restariam para isso o petróleo e a água.
* Médica, jornalista e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”.
perdão por invadir seu espaço, mãe- aliás, texto maravilhoso o seu.
ResponderExcluirquero fazer um apelo, gente: não é porque eu sou o filho de Mara que eu mereço menos atenção que ela, então deem uma forcinha pra um colunista carente e, se vc for um dos leitores e comentadores assíduos dos textos dela, comentem também os meus, nem que seja pra me xingar.
Sou filha de mestiços. Meu avô era filho de índios
ResponderExcluire minha vó de negros. Temos ainda de lambuja espanhóis
na árvore genealógica.
Como diria minha mãe, escapou de branco preto é e
assim eu me defino.
Se já fui vítima de preconceito não percebi, pois não
tinha consciência disso. Minha mãe nunca deixou que
fôssemos sequer respingadas pelo racismo, então
enquanto crescíamos aprendemos a nos defender.
Uma ótima reflexão Mara.
Abraços
Bravo, Mara. Gostei demais deste seu texto. Abraços
ResponderExcluirMara querida
ResponderExcluirNão sei se você viu as mensagens que correram pela internet contra os nordestinos durante a campanha para presidente, e intensificada esta semana.Seu texto álem de excelente, veio na hora certa.
Só não nos chamaram de santos, de resto, escorreu pela boca dos preconceituosos todo tipo de xingamento contra os nordestinos.
O pior é que desconhecem: no sudeste a Dilma teve um milhão a mais de votos.
Modéstia à parte sou pernambucana.
Milhares de nordestinos como eu ajudaram a construir a cidade de SP.E esses operários, professores, médicos, e demais profissionais me dão o maior orgulho. Obrigada,Beijos
Corrigindo: "além"
ResponderExcluirFernando, agradeço o elogio, entendo seu apelo, mas sugiro que pare de reclamar.
ResponderExcluirNúbia, obrigada por expor sua experiência pessoal. De minha parte, já fui vítima de racismo algumas vezes, e embora parda convicta, alguns não acham que eu seja.
Marcelo, é difícil falar do racismo sem resvalar para o piegas e o paternalismo. Os negros não aprovam nenhuma dessas opções.
Risomar, uma parcela das pessoas de São Paulo cultivam o racismo contra os nordestinos, e não disfarçam isso. Diante do resultado das urnas, com aprovação apoteótica a Dilma no nordeste, São Paulo, que é o local de origem do PSDB, protestou a sua maneira. Nem temos como negar esse racismo. Foi bom que você tocasse nesse assunto.
Gente, obrigada pelos comentários. É bom saber que não estamos falando sozinhos.
Mara, seu texto é uma bandeira contra o preconceito que reflete, no mínimo, falta de conhecimento e intolerância. O humor é uma excelente arma. Parabéns e beijos.
ResponderExcluirP.S.Como disse Risomar: modéstia à parte, sou nordestina.
Evelyne, nas piadas o negro é retratado de forma infame, sendo desprezado e humilhado, e para gerar riso, o seu papel na história é ridículo. Assim, quando se fala em humor e racismo, no sentido de defesa de uma causa, fica-se imaginando como será, e o resultado do salão foi avassalador. Obrigada por comentar.
ResponderExcluirMara, todo tipo de preconceito me incomoda, o racial é para mim um dos mais absurdos. Inteligente tratar um assunto doloroso através do humor e da arte. Adorei o texto! Parabéns!
ResponderExcluirAbraço!
Sayonara, concordo com você: os preconceitos são absurdos, mas permanentes. Temos de fazer algo para reduzí-los. Agradeço o comentário.
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