segunda-feira, 12 de outubro de 2009




Essa gravidez é sua

* Por Mara Narciso

Olha bem a sua cara no espelho. Você está com pelos no queixo. Essa história de ovários policísticos mexeu com você. O ultrassom mostrou que seus órgãos eram crescidos e cheios de pequenas “bolinhas”. Fez o exame porque as suas menstruações eram raras, quase anuais. Havia propensão para obesidade e diabetes. Falaram também que a gravidez poderia nem acontecer. A medicina baseada em evidências... só rindo. Você sabe que quando o seu vizinho tem dois carros e você não tem nenhum, estatisticamente você tem um automóvel.

O diabetes chegou, assim como o uso da insulina, e você viu os pelos multiplicarem-se no seu rosto. Erraram feio quanto à gravidez. Foram quatro. A sua menina mais velha está com treze anos, o caçula com dois. A sua casa está cheia de filhos, o seu marido subempregado, e o seu emprego de recepcionista não é grande coisa.

Soube estar novamente grávida aos 37 anos. Foi um acidente. Agora é abraçar a causa com firmeza, porque não há outra alternativa à vista, ainda mais para você, que é uma mãezona. Avisaram que terá muito trabalho. Será preciso não ganhar muito peso, ajustar a insulina frequentemente, controlar a glicemia e a pressão de maneira sistemática. Tomava duas picadas de insulina ao dia, aplicando 30 unidades de manhã e mais 10 unidades ao deitar. A dose foi aumentada e dividida em três vezes, uma em cada refeição principal. As dosagens da glicemia capilar, que eram raras, passaram a ser cinco, oito ou mais medições ao dia.

A sua intenção de não engordar durou pouco, porque a sua fome ficou incontrolável. O leve enjoo dos primeiros dias a deixou. Deitada na mesa de ultrassom, a médica vasculha as suas entranhas com o aparelho. Você estica o pescoço e acompanha na tela aquilo que é o útero, o saco embrionário, as placentas. No plural? São duas crianças que estão no seu ventre. Nossa! Meia dúzia de filhos em pleno ano de 2009? E tinham dito a você que seria difícil engravidar. Nem rindo.

A gravidez gemelar lhe deu uma fome pantagruélica. Em vinte dias o peso aumentou cinco quilos. As doses de insulina tomadas cinco vezes ao dia entre as de ação intermediária e as ultrarrápidas parecem água da bica. O efeito é muito menor do que o esperado. Toda a semana tem médico. Parece que você não é mais você, mas apenas um grande útero, duas placentas grandonas que ocupam todo o seu ser, seu corpo, sua mente, sua alma, seus sentimentos. Você não tem espaço mental para outra coisa que não seja médico (endocrinologista, obstetra, nefrologista, cardiologista, angiologista). A dosagem caseira da glicemia vara dias, noites e madrugadas. É preciso flagrar as altas dosagens para tomar insulina e também as baixas para comer. As doses de insulina de antes da gravidez parecem coisa de criança. Já está precisando tomar mais de 150 unidades para compensar a ação hiperglicemiante dos hormônios placentários.

Deite na cama, preste atenção, sinta as crianças dentro de você. Elas vão se formando, se mexem, reviram dentro de você. A natureza está se encarregando de criar, mesmo imperfeitamente – já que seu pâncreas não sabe mais produzir a insulina –, a vida que transborda. Sinta essas vidas, emocione-se, mesmo que não haja tempo para essas sutilezas. Nem as roupinhas são lembradas, mas é preciso comprar tudo em duplicata.

A sua vontade é a de dormir e só acordar quando as crianças tiverem nascido. Mas não; os problemas se avolumam. O peso está lá em cima. A glicose fica alta, e mesmo você se antecipando e fazendo uso de doses cavalares do hormônio, ela sobe antes do almoço. Passou então a tomar outra picada de insulina no meio da manhã e serenou. Ainda bem, pois as crianças que você espera, um menino e uma menina, já vão chegar. Urge se preparar para recebê-las.

Mas o coração está acelerado. Você já foi parar no pronto-atendimento duas vezes com fortes palpitações. O corpo não consegue acompanhar o aumento rápido de peso. Para piorar a pressão também subiu e é preciso começar com o hipotensor metil-dopa. A trombose na perna, que aconteceu tempos atrás, está causando grande inchaço. Mas, embora o peso oscile muito, geralmente com aumentos rápidos, tem semana que o peso recua. Algumas coisas, você, que já entende muito de gravidez, e agora de gravidez diabética de gêmeos, não entende. Mesmo quando faz igual o resultado pode ser diferente. O seu peso já encosta nos 90 quilos, e você sente nas costas uma tonelada.

Todos lhe receitam repouso, paz, tranquilidade. Mas como? Você tem uma criança de dois anos, e tem de ir ao médico quase todos os dias. Afastou-se do trabalho devido à ameaça de gripe suína, mas anda o dia todo e fica longas horas nas salas de espera, mesmo as secretárias usando a lei da preferência. Como seria bom achar alguém para tomar conta da sua glicose, poder descansar um pouco, não ter de ficar medindo, fazendo contas, calculando o que comer, como e quando comer.

No dia em que você foi internada, o seu coração parecia explodir. O mal estar foi terrível, com aperto no peito e falta de ar. O eletrocardiograma foi bom, mas precisou ficar lá uns dias. Então aproveitaram para dar o corticóide. É um outro hormônio que amadurece os pulmões das crianças, que deverão nascer antes do tempo. Mesmo no hospital foi um alívio ter as enfermeiras para cuidar de você, da glicose, das insulinas. Ai, que maravilha poder ficar sem pensar em números, contas e doses por incríveis quatro dias!

Olha aqui para a sua barriga. Com um pouco mais a pele se rompe. Ninguém entende por que você teima em aplicar todas as doses da insulina nela. Quantas injeções teriam sido? O seu abdomen já está com a pele toda “empedrada”, roxa e esticada. Quase não dá para medir a circunferência. O calor que lhe sufoca, o inchaço nas pernas, o andar lento e ondulante de quem não teve tempo de se acostumar à nova situação a fazem esquecer que é uma mulher. Toda quarta-feira as semanas da contagem progressiva mudam. Ai, e como demora!

Há tempos que dorme recostada. Não há como deitar de verdade. Com a cama cheia de travesseiros em sua volta, o marido virou irmão há várias semanas. Ver o seu suor, ouvir seus suspiros de cansaço não dão a real amostra de como é pesada essa situação. Fica insone, embora com muito sono, porque é impossível dormir devido ao calor.

Queriam que a gravidez chegasse a 38 semanas, mas a bolsa se rompeu e o trabalho de parto começou. A cesariana aconteceu com 33 semanas. Primeiro a menina e depois o menino. Gêmeos e prematuros e com tamanho praticamente normal. Quase seis quilos de crianças. A batalha foi árdua, mesmo assim o controle adequado passou longe. O medo de mal formação fetal aconteceu, mas o exame acurado dos recém-nascidos não deu nada, e eles não tiveram queda da glicemia ao nascer, pois nos últimos dias a sua glicose estava boa. Ficaram na incubadora e no oxigênio, mas já estão bem. E agora o motivo de não dormir é outro: as esfomeadas crianças choram e não querem largar o seu peito. E se uma se cansa, vem a outra e logo pega a teta. Você não é mais um grande útero. Passou a ser duas imensas mamas cheias de leite com os filhos nelas agarrados. Ser mãe é muito assim também!

* Médica, acadêmica do sétimo período de jornalismo e autora do livro Segurando a Hiperatividade

8 comentários:

  1. Será essa a sina da mulher - doar-se? E depois ver os filhos crescerem, irem embora e não se voltarem nem para um adeusinho? Deve ser difícil lidar com a ingratidão. Acho que eu nunca ia querer ser mulher, não.

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  2. Mara,
    Me senti ali, no suor, na pele, o próprio grávido (rsrsrs)... haja fôlego, mulher! Parabéns!

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  3. Em cima do " toma que o filho é seu", ou "quem pariu Matheus que o embale", recriei uma gravidez real, muito mais penosa do que um simples tomar conta. Em todos os aspectos é dificil ser mãe, mas todas nós queremos ter o gostinho. Obrigada Daniel e Cacá pelos comentários.

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  4. Acompanhei atentamente sua história. Fiquei aliviada com o desfecho. Salve !
    Nunca pensei em ter filhos.
    Sou do time de Patrícia Pillar que disse numa entrevista : " Existe vida além da maternidade". Concordo.

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  5. Celamar, um reparo: quase todas nós...E há quem chame de egoismo a decisão de não ser mãe. Egoismo é querer não deixar as pessoas livres para escolher. Obrigada pela comentário.

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  6. Texto cheio de poesia partilhada. Belo.

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  7. De novo o seu lado médica e o seu lado jornalista se fecundando para gestar textos como esse. Parabéns.

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  8. Obrigada Eduardo e Marcelo. Fico feliz por terem me prestigiado.

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