Os
bolos da tia Iolanda
* Por
Tânia Haskel
Na
década de 70, quando eu ainda não tinha esse horroroso tom de
louro-cinza nos cabelos, mas sim, cachos dourados da cor das espigas
de trigo amarrados em laço de veludo azul, e nas rádios
esgoelavam-se Beatles e Rolling Stones; as famílias costumavam
visitar-se todo final de semana, via de regra, a família do meu pai,
e na maioria esmagadora, íamos na casa dos que moravam em Blumenau.
Tínhamos tios em Luis Alves, Ibirama, Encano, Ascurra, mas muito
longe para uma “passadinha” típica de domingo.
Na
Blumenau daqueles tempos, não havia televisão na maioria das casas,
nem qualquer outra grande opção para diversão na cidade, além de
dois cinemas, salões de bailes e domingueiras. Mas isso era coisa
para adultos e solteiros... E nessas visitas de domingo,
automaticamente já se marcavam as próximas reuniões, festas ou
visitas, e não era raro que mais de um núcleo da família se
visitassem ao mesmo tempo. Meus irmãos raramente iam junto nessas
incursões, pois no auge da adolescência, queriam mais era ir ao
cinema, às festinhas do Clube Subtenentes ou ficar em casa ensaiando
suas músicas ao violino e gaita, as músicas de bandinhas alemãs
que animariam as festas lá de casa, quando nós fôssemos a bola da
vez. E lá íamos nós, engomados nas nossas “becas” de domingo,
à espera do ônibus, de boa vontade pelo meu pai e não raro, à
contragosto pela minha mãe.
Mas
era tradição, e rotineira. E qual era o roteiro: Por ser mais perto
da nossa casa, íamos muito na casa do Tio Nicolau. Tinham uma casa
muito velha, no bairro Água Verde, toda tomada de cupins, com tudo
que tinha dentro caindo aos pedaços também, mais parecendo uma casa
mal assombrada. Eram dois viciados. Minha tia, esquelética, vivia em
função de fumar um cigarro atrás do outro, cuidar do boteco que
tinham na frente da casa, num cômodo reformado, e de gritar com meus
dois primos, quando as traquinagens ultrapassavam o ponto de inércia
dela. Seus cabelos excessivamente brancos apesar dela ser
relativamente jovem, sempre estavam de mal com os ventos.
Ela
parecia mais uma personagem saída dos contos de fada, não
exatamente na figura da princesa... e não por nada, o nome dela era
Alma... Eu não entendia muito o porquê daquelas nossas visitas,
porque sempre voltávamos prá casa “defumados em nicotina” e com
os cabelos cheios do “subproduto” dos cupins. Meu tio, sempre
recostado na cadeira de balanço que ficava ao lado da janela da
copa, cuja asa direita pendia pela falta de parafusos em uma das
dobradiças superiores, estava sempre à ouvir algum jogo no rádio
SEMP. No caso, o preferido era o clássico entre Palmeiras e
Olímpico, times de elite blumenauenses, há muito extintos.
Vestido
com uma camisa do Flamengo que mal lhe cobria o volumoso abdômen,
parecia nem notar nossa presença, só acenava distraidamente,
absorto e focado no radialista que punha toda a emoção naquelas
narrações esfuziantes e irreais, no som do seu radinho de pilha.
Ele socava a mesa, xingava o juiz, a mãe do juiz, os jogadores, até
o gandula caso atrasasse a reposição da bola. Só mesmo quando
tocava o apito final é que ele nos percebia na totalidade. Ninguém
se importava com isso, ficávamos de papo com minha tia, que sabia
conduzir uma conversa animada como ninguém, cheia de histórias e
“detalhes sórdidos” de todo o clã, em especial, dos Haskel do
Garcia.
Daí,
meu tio finalmente se juntava à nós, contando detalhes do jogo, por
vezes irritado com o resultado, por vezes feliz com a vitória do
Olímpico, e eu adorava ouvi-lo dando aquela risada que mais parecia
a do Papai Noel, um sonoro ho-ho-ho! Minha mãe ficava abismada que
minha tia conseguisse fazer o “café das visitas” sem largar um
dedo sequer do cigarro aceso, e com sorte, não éramos sorteados com
cinzas ou alguma bituca nas xícaras. Ela era viciada no cigarro, e
ele, no futebol, e acredito que esses vícios, somados ao trabalho no
boteco, era o que lhes impedia de dar um upgrade na casa. Mas tanto
eles como aquela casa velha são riquezas nas minhas lembranças de
infância, pois foi lá que passei um dos natais mais memoráveis da
minha vida, com Papai Noel de verdade, com meus primos acuados num
canto da sala, apavorados... mas isso é assunto para outra história…
Outras
vezes visitávamos o Tio Albert, na Fortaleza, bairro distante do
centro, mas onde gostávamos de ir por se localizar num vale
belíssimo, cercado pelo verde dos pastos e com uma imensa mata de
eucaliptos e pinheiros a perfumar o ar. O sítio desse meu tio ficava
no canto onde as montanhas se abraçavam, e a casa, estrategicamente
situada aos pés delas. Era muito silencioso ali, só se ouvia o
canto dos pássaros e o vento revolvendo as matas. Mais parecia o
endereço da paz. O caminho para chegar à casa era ladeado de
margaridas, caprichosa e pacientemente plantadas pela minha tia Anne,
e eu achava aquilo esplêndido, pois vivia repleto de borboletas.
Meu
tio, um simpático gordinho de suspensórios, bochechas rosadas e de
apertados olhos azuis, nos aguardava na porteira que limitava o
quintal da casa e dos pastos. O quintal era repleto de flores
multicoloridas, plantadas em belos canteiros, tudo tão bem cuidado,
que dava gosto ficar olhando e admirando a generosidade da natureza
naquela profusão de cores. A casa era antiga mas bem arrumada, com
sua varanda cheia de gerânios nas floreiras, a cozinha fresca pela
brisa que soprava pela janela, tremulando nas cortininhas de xadrez
bordado e o cheiro dos eucaliptos envolvia tudo. O quintal era
pontilhado de aves domésticas, mas eu gostava era de chegar lá e
tocar o terror nos patos.
Meus
pais como sempre, se reuniam com meus tios em intermináveis
conversas na sala. Ficava imaginando o que tanto eles conversavam,
como conseguiam se divertir passando o dia todo falando! Pensava
nisso, ao mesmo tempo em que corria atrás dos patos, aves
desengonçadas e engraçadas mas que me encantavam. Me era proibido
sair para os pastos pois o touro mais bravo do meu tio estava solto e
eu, até hoje, morro de medo desses bichos. Depois de correr a manhã
toda atrás daquelas pobres aves, sem primos para brincar, sem poder
correr nos pastos, acabava ficando entediada.
Naquela
casa não havia brinquedos porque meus tios nunca tiveram filhos. O
que compensava ir lá eram os almoços da minha tia, verdadeiros
banquetes repletos de pratos da cozinha alemã, temperados no
agridoce. Marreco recheado, farofa de frutas, chucrute com anis,
nhoque de batata doce dourado na manteiga e farinha de rosca, picles
de beterrabas e pepino na folha de uva. E as sobremesas: ovos nevados
boiando num creme rosado feito de amoras, sagu de vinho com calda de
baunilha, calda de carambola com pudim de chocolate... imperdível!!!
Saíamos de lá rolando…
E
tinha a vez de ir na tia Walinka, também no Água Verde, pouco mais
distante do Tio Nicolau, mas relativamente perto para irmos à pé.
Era nossa “tia revendedora da Avon”. A casa cheirava à
“Charisma” e” Toque de Amor”, conhecidas fragrâncias da
perfumaria famosa. Estava nesse ofício desde que a conhecíamos e
era o que ela mais gostava de fazer para driblar as ausências do meu
tio Oswaldo, indo de casa em casa com sua sacola de revendedora. Meu
tio era dono de uma boate em Ascurra, pequena cidade do interior
catarinense e raramente estava em casa, pois o movimento maior do
“estabelecimento” era nos finais de semana.
Nessas
visitas, meu pai nunca ia, por conta da ausência do meu tio, por não
ter com quem manter assuntos e conversas de homem. Eu adorava ir lá
porque tinha 3 primas e 1 primo quase da mesma idade que eu, e
brincávamos de gastar a sola do pé. Meu primo era mais “na dele”,
não ficava muito conosco, mas gostava da nossa visita porque minha
mãe sempre levava bolo de queijo prá ele. Era um pequeno
chantagista, falando que só gostava de ir na nossa casa por conta do
bolo de queijo da minha mãe, e ela tendo ouvido isso, nunca o
decepcionava. Conosco, essa chantagem funcionou do contra, pois ele
ganhou o direito de ficar sempre de escanteio nas brincadeiras.
Um
dia, minha tia chegou lá em casa chorando, e depois de uma longa
conversa com meus pais, deixou minhas primas e meu primo lá em casa,
num ato desesperado, decidida a ir atrás do meu tio e quem sabe,
trazê-lo à realidade da vida, fazê-lo lembrar que tinha uma
família. As ausências dele estavam cada vez maiores e as presenças
mais espaçadas, era mister que se tomasse alguma atitude drástica.
Minha mãe se apavorou na iminência de ficar com 5 crianças em
idade escolar em casa, com responsabilidade quadruplicada e com mais
4 bocas para alimentar, mas não poderia negar esse favor à minha
tia, pois tinha pena e sabia o que ela passava tendo que criar e
educar 4 crianças, praticamente sem ajuda. Eu fiquei feliz da vida,
pensando que tinha ganhado 3 irmãs e mais 1 irmão, e que eles
ficariam lá em casa prá sempre. Mas algumas semanas depois, minha
tia voltava, sozinha, entristecida, prá buscá-los. O planejado não
dera certo. Deixou alguns perfumes prá nós como agradecimento e se
foi. Minha ilusão de ter uma família gigante cairia por terra e a
vida voltaria ao seu curso normal.
Mas
o programa mais legal, o que mais gostávamos dessas visitas
domingueiras era de ir na casa do tio Fridolin e da Tia Iolanda, no
Garcia. Quando minha mãe anunciava com indisfarçável sarcasmo:
“arrumem-se que hoje vamos na casa dos Barões !!!”, já sabíamos
que iríamos ter um dia atípico. Esse núcleo da família do meu pai
era caricato. Não se sabe bem porque, se achavam a “nata” da
sociedade blumenauense, com um braço na realeza, só porque detinham
o único automóvel de toda a família Haskel na época, e mesmo
assim o aparato ficava mofando, estacionado infinitamente na garagem,
pois ninguém da casa sabia dirigir. Minha prima Madalena tinha pavor
até de chegar perto daquela geringonça e meu primo Osvaldo não se
interessava, pois sabia que se aprendesse a dirigir, teria que levar
todo mundo prá lá e prá cá contra a sua vontade. Foi esperto.
Quando meu tio resolveu que enfim, tirar a carta, foi do Garcia até
na Fortaleza, na casa do meu tio Albert – prá se mostrar, claro –
todo em 1ª marcha, e tanto forçou o motor que o carro pegou fogo
quando chegou ao seu destino! Motivo de chacota por décadas…
Minha
tia Alma soube do incidente e foi a pilhéria do ano, a família toda
ria de se acabar. No alto do seu nariz empinado, logo compraram outro
carro e calaram o riso de todo mundo. Ponto prá eles. Se achavam os
contemporâneos por manterem um filho na Alemanha. Para a sociedade
blumenauense dos anos 60-70, sem informação suficiente, achava-se
que era o poder dos poderes quem pudesse mandar um parente prá
estudar ou trabalhar na Europa, mas o detalhe sinistro, o que ninguém
esclarecia, era de que a Alemanha contratava estrangeiros para fazer
o trabalho sujo da reconstrução do pós-guerra, serviços que eles
mesmos não queriam fazer, e sabe-se lá o que isso poderia
significar... mas meus tios rolavam em cima dessa bravata. Meu primo,
mais esnobe ainda que os pais, dificilmente os teria deixado cientes
de que na realidade carregava tijolos, limpava latrinas, faxinava
obras na dita “promissora” Alemanha capitalista. Alheios a isso,
saboreavam o status de terem uma casa duplex numa área livre de
enchentes (curioso é que isso, ainda hoje, é um status velado em
Blumenau...).
Era
uma casa confortável, realmente, com suntuosas cortinas de veludo
vermelho na sala, lustres de cristal, móveis de jacarandá, tapetes
peludos, e eletrodomésticos modernos de ultima geração na cozinha
(em 1970 traduzia-se “última geração” como sendo ter
liquidificador e batedeira de bolos...). Também gabavam-se de ter
uma casa de praia em Camboriú, mas o que ficamos sabendo é que o
imóvel ficava tão longe da praia propriamente dita que se alguém
quisesse se refrescar nas cálidas águas do Atlântico sul, teria
que ir de ônibus ou táxi. A “baixa casta” da família,
provavelmente por despeito ou inveja mesmo, se divertia, deitava e
rolava comentando o fato.
Chegar
lá e ver a coleção de postais que o antipático e narigudo primo
Nelson acabara de mandar das frias terras germânicas, era programa
obrigatório para as visitas. Fazia parte do roteiro... Aí tínhamos
que aguentar postal por postal, foto por foto, toda a falácia em
torno dos grandes feitos do “Nelsinho” no trabalho, saber o que o
“Nelsinho” comprou de bárbaro, o que a Alemanha tinha de legal e
diferente do Brasil, e blá-blá, blá... Meu pai fazia vistas
grossas diante dessa galhardia toda, mas minha mãe torcia o nariz
quando a coisa tomava proporções tais que ficava em vias de minar o
“enfastiômetro” dela. Mas tudo isso fazia parte da espera para o
grande momento, a apoteose da visitação.
Prá
mim, o divertido era poder me esbaldar de brincar naquela sala
aveludada, correr entre aqueles móveis, afundar nos tapetes, mas
sempre sob o olhar atônito da minha tia, disfarçado de sorriso
amarelado. Aí, numa pausa, ia ver os postais e fotos com neve do meu
primo esquisito do estrangeiro. Mas o melhor, o que realmente nos
levava até lá, o que nos fazia aguentar todo aquele pavoneamento,
os ares superiores, o peito estufado dos meus tios, eram as
maravilhas em camadas que minha tia trazia orgulhosamente da cozinha:
os seus famosos bolos confeitados. A fama desses bolos corria solta
pelo bairro e todo mundo da família já tinha provado e aprovado com
louvor e olhos esbugalhados. Não fossem tão bons, duvido que alguém
quisesse de fato voltar a visitar a “Família Pavão”.
Minha
tia não era profissional, teve o privilégio de nascer com esse
talento inato. Nunca trabalhou na função porque talvez se achasse
“madame” demais prá trabalhar fora. E meu tio alimentava essa
soberba dela porque do alto do seu discurso machista, não conseguia
imaginar a mulher trabalhando para os outros e quem sabe, o
inadmissível, ganhando mais dinheiro que ele. Enfim, uma pena. Além
de belíssimos, essas maravilhas em pedaços exalavam um aroma, que
confeitaria “classuda” nenhuma conseguia imitar, nem com aqueles
balcões lotados das mais finas iguarias. Era um aroma misto de
levíssima massa branca misturada à pura fava de baunilha, com as
nuances do aroma de chantilly e leves notas de limão persa, que se
espalhava no ar como a mais fina fragrância francesa. Tão singular
que conseguíamos adivinhar seu recheio.
Minha
tia os trazia à mesa com um sorrisinho de satisfação no canto da
boca, pois era segura do seu talento e do sucesso que faziam. A mesa
posta para o café, prá mim, era digna dos mais suntuosos palacetes
da realeza. Tortas, bolos, folheados açucarados, biscoitinhos
recheados diversos, tudo saído das mesmas mãos de fada e servidos
em belíssima porcelana Schmidt, item indispensável na lista de
casamento daqueles tempos. A “parte rude e tosca” da família,
que éramos nós e todo o resto do clã, avançávamos sem pudor
naquelas fatias de paraíso.
Me
recordo até hoje, de um bolo magistral, todo salpicado de balinhas
de chocolate colorido (protótipo do M&M de hoje). Era para o
aniversário da minha prima Madalena. Muito alto, devia ter umas 10
camadas de recheio, e vinha todo pomposo no alto de um prato de
cristal próprio, com pedestal. Envolto em generosa camada de
levíssimo chocolate maltado, era todo bom, no visual e uma festa
para o paladar. Quando meu prato foi servido, pude experimentar a
mais sublime sensação gastronômica da vida! A massa perfumada,
leve, com recheio de creme de ameixas pretas e nata batida com
baunilha, tinha um quê de encantamento indefinível. As bolinhas
coloridas explodiam na boca, liberando um creme achocolatado que até
hoje nunca experimentei e do qual nunca esqueci, está marcado na
minha memória gustativa prá sempre.
Ao
fim da visita, com os ouvidos doendo, levávamos prá casa, como
prêmio da “confeiteira”, generosos pedaços daquelas delícias,
finamente embrulhadas em guardanapos de papel rendados. Eles não
davam ponto sem nó, sempre fazendo-nos lembrar de nossa condição
inferior e de sua superioridade, fosse num pedaço de papel
afrescalhado como o que envolvia as sobras de bolo. Mas nem
ligávamos...tudo nos faria relembrar e nos daria motivo para
passarmos horas ao redor da mesa do café no dia seguinte, rindo e
confabulando sobre eles, do modo de vida deles, e de como eram
emproados, cheios de si, bravateiros, e das inegáveis maravilhas
servidas naquela visita. Quando seria a próxima? Dependeria dos
cartões enviados pelo tímido e fanhoso primo Nelson.
*
Escritora de Blumenau/SC.
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