Fim
de ano, primeira vez
* Por
Urariano Mota
Era
de noite, em 31 de dezembro de 1967. Éramos três: eu, meu amigo
geômetra e um guia, quase amigo também. Eu vou me chamar de Peito
de Nuvem. Diáfano Como a Brisa, o meu amigo geômetra. Bondoso Como
um Arcanjo, o nosso guia.
Íamos
todos à Bahiana.
Naquela
época, só o Todo Bondade não era adolescente. Nós outros dois,
por volta dos dezesseis anos. Bondade, não, já passara dos vinte.
Ele
vivia de pequenos golpes. Um trambique aqui, uma chorada ali, uma
vigarice mais adiante. Andava de camisa Volta ao Mundo, dupla face,
cor marrom na frente, cor de creme atrás, óculos escuros, chapa
frouxa encardida nos dentes precocemente cariados. Vinha da zona da
mata, pois o pai abrira falência. Alimentava-se, como dizia, por
verdade e cálculo para nos comover, de caldo-de-cana avec pão-doce.
Éramos quase puros. O nosso amigo, escolado.
Íamos
todos à Bahiana.
Meu
amigo geômetra era franzino, míope. Branco de não se expor ao sol.
Meticuloso, organizado, sábio. Passava horas a fio no estudo da
geometria, embrenhando-se em intricados teoremas, lançando novas
proposições, passeando desenvolto nas teorias de Gaspard Monge. De
costas para o quadro, como se fosse girar e dançar um tango,
desenhava firme com um só volta uma circunferência. Gostava de nos
pregar surpresas. Estava quieto, por exemplo, calmo, e de repente
dava um salto mortal, inesperado. E ficava a nos olhar muito sério.
Sim, senhor, íamos todos à Bahiana.
Chegamos
lá às oito. Melhor dizendo, eu e meu amigo geômetra. Já na
Avenida Rio Branco nos separamos, com medo talvez de afundarmos todos
num mesmo pântano, Bondoso seguindo prum lado e nós pro outro.
Marcamos ponto de retorno ali mesmo, em frente ao Moulin Rouge, às
onze e trinta, margem de tempo suficiente para a nossa aventura (uma
empresa que ia dar o que falar, atinávamos, sem prever por quê), e
a volta pra casa, de táxi, às doze em ponto. Estávamos bem
vestidos. Quase que trajados para uma noite de gala. Eu, de calça
nova, escura, comprada num alfaiate que vendia no térreo de um
edifício na Siqueira Campos, camisa vermelha. Rubro-negro de relógio
no pulso, um relógio grande, bolachão, que só vivia parando, que
de vez em quando me fazia dar um sacolejono
braço pro ponteiro trabalhar, disfarçando num cacoete. Sapato do
ano passado, mas bem cuidado, pois que pisava cauteloso, evitando
poças, dias de chuva, de muito sol, barro ou asfalto muito áspero.
Sapatos bem engraxados.
O
geômetra combinava uma calça roxa com uma camisa muito branca,
limpa, bem engomada, de botões graúdos fechando-lhe o pomo de adão,
mandada fazer há uns três meses e ainda não usada numa costureira
conhecida. A camisa mais se assemelhava a uma nobre bata, de mangas
pelo cotovelo, passando-lhe na cintura, de linho grosso, empertigada,
com a dignidade de um uniforme de soldados reais em parada militar.
De vida própria, autônoma, dançava no magro corpo do matemático.
Tinha
os óculos brilhando na noite do dia trinta e um, com infinitas
camadas, apequenando-lhe os olhos constantemente piscando,
fechando-se, abrindo-se, abeirando-se das coxas nuas das senhoritas
do prostíbulo, como se o mundo estivesse sendo descoberto naquela
noite.
Subimos
à Bahiana. Pela resolução nos passos, dávamos a impressão de
velhos marinheiros. Mas a primeira impressão que senti foi a de que
ali não era o meu lugar. Olhei para o meu amigo geômetra: ele se
enroscava. De repente, vimo-nos jogados no centro do salão, no
centro de tudo aquilo que imaginávamos como vida farta, luxúria,
soltar-se à larga, expansão num bacanal, enfiamento num carnaval
sem medidas. Olhei de novo para o meu amigo. Senti que sob a luz
negra ele estava na verdade quase a cair. A música estrondava.
Cruzei os braços sobre o peito. Onde estaria o nosso guia a esta
hora? Uma mulata de Di Cavalcanti, notei já tarde, sem tempo para
reagir, começou a vir em minha direção. É agora! Um sistema de
alarme começou
a soar, campainhas de metal danaram-se a retinir, discos começaram a
se chocar, uma música longínqua de esferas siderais, um cordão sem
fim de despertadores a trinar. Olhei para o meu relógio: estava no
mesmo lugar. Cerrei mais ainda os braços. Era agora ou nunca. A musa
da pintura começou a se roçar, e eu, em desespero de causa, comecei
a farejar o teto. Ela me abraçou, sempre à vista de todos, e eu,
perdido, olhei-a com a cara da mais deslavada indiferença. A moça
sorriu:
-
Vamos dar uma, meu filho?
-
Por enquanto, não. Estou sondando o ambiente.
Sentamo-nos
a uma mesa. A irresistível bem junto a mim, com a coxa sobre a minha
perna. Eu bebia. Meu amigo me confidenciou que estava de olho numa
lourinha. Romântico, num clichê das novelas de rádio colgate
palmolive, me aproximei do ouvido de minha moça e lhe disse,
aveludando a voz, que meu amigo estava enamorado da lourinha, se ela
não tinha interesse de sentar em nossa mesa e acompanhá-lo. Claro!
Num ato incrível, a lourinha já estava em nossa mesa, ao lado
do geômetra. Dividimo-nos então. Levantei-me, peguei da mão da
jovem, como um cavalheiro da nobreza, e trancamo-nos num quarto de
tabique.
Ela
me ajudou, foi gentil e me ensinou onde exatamente ficava aquele
lugar que eu julgava estivesse logo abaixo do umbigo. Está certo
agora?, arrisquei; sim, é aí mesmo, ela respondeu.
Apagou a luz do quarto e nos perdemos em sombras.
Enquanto
vestia a calça comprada no alfaiate, eu me perguntava o que estaria
fazendo àquela altura o meu amigo. Ele não bebia, não fumava,
enxergava mal e não tinha físico ou habilidade para se defender.
Passando o cinto, que eu, não sei por quê, havia-o todo tirado,
imaginava-o morto, estendido no salão, ou desmaiado, com a lourinha
aflita tentando reanimá-lo, ou ele sendo jogado para fora pela
janela do segundo andar do pardieiro. Ou mesmo verde, violáceo,
desconsolado, olhando os navios parados na penumbra do cais.
Saio,
e o espetáculo que vejo não me deixa crer: o meu amigo está bem
assentado em sua mesa, vermelho como uma lagosta, dando cotoveladas
num marujo grego, soltando risada, de verbo fácil, com a loura no
colo, com um cigarro nos dedos, fazendo bico, dando baforadas. E se
dirige a mim aos berros:
-
Cadê você, rapaz? - e apertando-se na lourinha, me aponta: - olha o
homem!
Só
consigo lhe dizer “olhe a hora, rapaz, não vá se entusiasmar
muito”. Levanta-se, dirige-me ordens, que eu fique ali guardando a
mesa, que agora é a sua vez, que a lourinha estava no papo.
Encaminha-se ao quarto, ouço ou imagino em angústia a volta da
chave na porta.Enfim
a sós, põe-se sério. Apenas resfolega pelas narinas o fogo do
álcool. Arqueja. Aos poucos vem ganhando controle. No seu habitual,
vai, metodicamente, depois de estar nu, retirando o par de meias, uma
por uma, lento, todo concentrado em seu ritual. Meu amigo geômetra
não se perturba. Pálido, vai paciente deslizando a meia sobre o pé,
concentrado no strip-tease do pé. A prostituta se impacienta:
-
Não é preciso tirar a meia, não.
E
ele, desperto com um salto, veste de novo a meia rápido, como
se pego em flagrante delito:
-
Eu estava esquecido. Engraçado, eu já tão acostumado!
A
moça sorri, e deitada sobre a colcha costurada de quadradinhos de
panos diversos, deixa a pose de espera e se põe a brincar com o
geômetra, como se tivesse nas mãos um bibelô, um bonequinho de
carne gracioso que faz piruetas. Diáfano, refeito, ele abre os
braços, de joelhos sobre o colchão, e ameaça soltar um grito de
tarzã na selva. A moça franze o semblante.
-
Meu filho, por que você é tão magro?
E
o geômetra, gutural, ligeiro:
-
É de meter!Descemos
acabrunhados para a rua. O efeito da cerveja passara. Apalpávamos os
nossos bolsos, sentíamos o efeito da noite do dia trinta e um de
dezembro. Restavam-nos, se muito, juntando tudo, uns trinta e nove
cruzeiros. Cabisbaixos, trocávamos resmungando as nossas impressões,
a minha foi assim, já a minha fez isso. Normal? Normal. Onze e
quinze. Estávamos na Avenida Marquês de Olinda, defronte ao Moulin
Rouge. De longe, avistamos o nosso guia, vindo do lado do porto,
balançando os braços, que ao ver as nossas caras prorrompeu numa
gargalhada sinistra.
-
Tudo bem? Rapaz, eu nunca, nunca... - e acenava o dedo sobre o
nosso espanto: - Nunca, nunca em toda a minha vida eu tive uma
relação como a que eu tive hoje. Vocês estão pensando que eu
estou mentindo? A mulher não queria me deixar sair do quarto. Mulher
carinhosa, rapaz, humana, não teve nenhum comércio no meio. - E
depois de uma pausa tenebrosa: - Que foi que houve, não deu certo
com vocês? Sinto muito, mas comigo foi diferente.
E
repetia enfático: “Nunca, nunca, nunca...”, o nunca retinia em
nosso ouvidos, fazia eco dentro da gente, nos deixava sem vontade de
articular qualquer mentira. Apenas balançávamos simultâneo os
queixos, soltando aqui e ali uns gemidos. O nosso guia ria, e à
medida do nosso desencanto exibia mais ainda o seu
encantamento.
Foi
ouvindo “nunca” que às onze e trinta pegamos um táxi e
voltamos. Para um bar em Água Fria, melhor dizendo. Já no bar, às
doze em ponto, com todo o mundo se abraçando, aos votos de feliz
ano-novo, Bondade nos contou às gargalhadas a verdadeira história
do seu paraíso. A primeira experiência era sempre assim,
assegurava-nos, e mandava-nos repetir o nosso acontecido. Contávamos.
Feliz, pagou-nos um champanhe barato, do qual reforçava as
qualidades afetando a pronúncia do “georges aubert”, enquanto lá
fora os sinos da matriz de santo antônio repicavam. Entusiasmados,
arriscávamos uns assobios para as moças que tomavam o rumo do
reveillon: parecia-nos que passavam todas de branco. No céu, mil
novecentos e sessenta e oito abria-se em fogos de artifício.
* Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici, “Soledad no Recife”, “O filho renegado de Deus”, “Dicionário amoroso de Recife” e “A mais longa juventude”. Tem inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao ensino em colégios brasileiros
Assim como o primeiro sutiã, que a gente nunca esquece.
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