terça-feira, 11 de outubro de 2016

Os de Serra Morena

* Por Evelyne Furtado


Os de Serra Morena lá não nasceram. Nasceram, eles, em terras outras, mas lá encontraram pouso, como se pouso tivessem as almas daqueles lá, pois todos padecem de um atroz desassossego.

São todos desvalidos de siso e expressam, tal falta, com urros, murros, silêncios ou imobilidades férreas: Pastoreiam, guerreiam, assaltam, deliram e executam tais feitos como querem ou como a loucura própria determina.

Todos carregam cruzes. Chego a pensar, sobre aqueles lá, que as dores no espírito ou no coração - como queiram vocês chamar o que dói a tal ponto de desassossegar-passaram aos músculos, às carnes, à pele e aos ossos, enfim, tudo dói por lá.

Os de Serra Morena: Cardênio, Lucinda, Teodora, Sancho, o Cura, o Barbeiro, o da Triste Figura, os poetas, os bardos, os romancistas, os amantes de hoje e de ontem e mais todos que se identificam com eles daqui ou de lá, não começaram suas sinas na dor; antes passaram todos pela sina do amor ou algo que o valha.

Sem nenhuma exceção aquelas loucuras juntas tinham em comum, além de uma inegável e suprema graça, a desilusão.

É preciso que se diga, contudo, que para se chegar ao desencanto há que se começar pelo encanto. E haja encantamento: Uns tiveram a ventura de amar e serem amados ou pelo menos acreditaram nessa espécie de condão. Outros eram crentes em capas, espadas, cavalarias, romances e salvação.

Todos perderam da realidade a noção, mas já descem a Serra por obra e graça da fé nas notícias de que ao seu pé há uma estalagem, ou venda; ou café ou castelo, onde suas histórias se cruzarão e que, nesse canto, por obra do maior visionário de todos os tempos, a vida seguirá com o fim dos desencontros, o término da loucura e a vitória da boa vontade aliada a um bocadinho de razão.

Texto inspirado em Dom Quixote, de Miguel de Cervantes.


* Poetisa e cronista de Natal/RN.

Um comentário:

  1. Fiquei pensando na sua nova profissão, mas também no Alienista. Gostei disto: não começaram suas sinas na dor; antes passaram todos pela sina do amor ou algo que o valha.

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