quarta-feira, 26 de outubro de 2016

A desumanidade nossa de todos os dias

* Por Mara Narciso


Zeca Baleiro que me perdoe, mas beijo de novela não me faz chorar. E não apenas por que não vejo novela. O que me faz soltar lágrimas é o trabalho dos médicos sem fronteiras, ligado a guerras, tragédias naturais, epidemias, situações em que as dores nos chegam em profusão.  Vejam, se tiverem coragem. Sentados em nossas torres (nem sempre de marfim), em parte nos sentimos a salvo, importantes. Lá embaixo, quem pode disputa um lugar na fila de comida, ou nova oportunidade de ter esperança como futuros devotos. Temos algo a repartir? Então que repartamos logo, pois a fome tem pressa. É para hoje; amanhã a vida já partiu. A morte, não sei se todos repararam, é irreversível. É preciso salvar vidas, acolher crianças perseguidas, velhos abandonados. Todos sabem disso, mas preferimos esquecer esse lado da nossa consciência. Se é que ainda a temos. Somos muitos que não queremos fazer o bem. Basta ler uma mesma notícia sob pontos de vista opostos. Duas verdades aparecem simultaneamente. Os socorristas com cães se agarram num amontoado de escombros em busca de uma vida, enquanto aviões passam e mandam mais bombas sobre eles. Santa ingenuidade! As vidas dos nossos inimigos vencidos e rendidos nada valem. Matá-los é a solução vista, filmada e divulgada. Tal gesto monstruoso demonstra força. Se por um lado não cai uma folha de árvore sem a permissão de Deus (é o que dizem), por outro, nenhuma guerra acontece sem que o interesse econômico diga sim.

Quanta crueldade contra nossas crianças, a parte mais fraca, que, caso fossem filhas nossas, abriríamos caminho até com as mãos, mas os pequenos de outros países, junto com seus pais imigrantes são vistos como inimigos, alguns derrubados com rasteira nas fronteiras. Quando para cá imigram comem, bebem, agasalham-se, ocupam os postos de trabalho (escassos), instalam-se em abrigos, produzem lixo e dejetos. Melhor que não venham se somar aos nossos desmesurados problemas. Mal admitimos o quão mesquinhos somos. Está com pena? Leva para casa, provoca aquele que pensa: para mim, tudo, para os demais, coisa nenhuma. Solidariedade? Quem nada pode nos oferecer que desapareça.

Caso tenha pouca comida ou agasalho, o meu primeiro. Tenho força, avanço, derrubo, passo na frente. Numa cultura brasileira, que acha natural tudo que nos beneficie, o nosso estando garantido, se sobrar algo que não queremos, faremos “caridade”. Somos hipócritas, queremos exclusividade no território, e nos dizemos bonzinhos. Queremos tudo para nós, não pensamos no coletivo, não respeitamos os vizinhos, perturbamos, fazemos barulho, e, egoístas, falamos “da minha porta para fora, não quero nem saber”.

As monstruosidades do noticiário demonstram que criamos seres insensíveis, a julgar pelos fatos, somados ao que falamos e escrevemos. Nem duras leis seguram nossos instintos perversos. Mesmo diante de uma calamidade que exija ampla ação governamental, preferimos o saneamento estético, como esconder a ferida urbana com um muro. Não sejamos cínicos. A lenda de esperar o bolo crescer para dividir já faz parte do anedotário. Até que ponto vai nossa mente abominável? Seríamos capazes de contar ao padre/pastor/terapeuta/mãe/melhor amigo pelo menos parte do que pensamos? Ah, muitos de nós não só falamos como trombeteamos todo tipo de desprezo, matamos socialmente, humilhamos, espezinhamos, usamos qualquer arma para o achincalhe. O prazer é comandar campanha difamatória, ameaçando de morte em rede nacional. E aos que estão fora do jogo, vamos chutar.

Somos uma sociedade doente. A quem detestamos queremos tirar tudo, bens, dignidade, respeito social, caso ainda exista algum. Com a História suja que temos de caçar, torturar, seviciar, cortar pele e carne dos nossos semelhantes (vide tortura e perseguição a indígenas e negros desde o século XVI, e aos pobres e fracos até os dias de hoje), o que esperar desse tempo selvagem em que vivemos? A religião pretende domar os vícios e implantar uma civilidade do bem. E o que temos? Gente capaz de causar dor ao outro para se divertir. O que fazer para nos parar? A nós, esses monstros?

*Médica endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia Feminina de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico, ambos de Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”   



4 comentários:

  1. Assino embaixo, palavra por palavra, sem tirar e nem por. Texto lúcido e brilhante. É o retrato, nu e cru, sem retoques, da humanidade, cruel, cínica, podre e egoísta. Parabéns, Mara!!

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  2. Esse retrato dói. Obrigada, Pedro, pela força.

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  3. Às vezes - e como são muitas essas vezes - nada é mais desumano do que nós, seres humanos. Texto contundente. Abraços, Mara.

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  4. A lista de torpezas e patifarias é dispensável. Nem é preciso citá-la. Todos a sabemos de cor. Choca tanto que nos faz mal falar. Obrigada, Marcelo!

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