terça-feira, 25 de outubro de 2016

A sogra do Medeiros

* Por Rubem Costa


Mesmo a contragosto, sou obrigado a reconhecer que minha sogra às vezes tinha razão”, disse-me Medeiros, recapitulando na memória a figura adiposa da mãe de sua mulher, dona Margarida, senhora veneranda que Deus, embora tardiamente, convocara na véspera para o gozo da vida eterna. “Visão do mundo”, acrescentou o liberto, “algumas vezes ela conseguia ter, porém mesmo que não a tivesse, sempre arranjava um jeito de acomodá-la em premissas falsas que retirava de um repertório de provérbios acumulados desde a infância distante”. Pelo menos foi assim que ele falou ao me contar sobre o dia em que a megera (expressão dele, não minha) decidiu perseguir a família na viagem de ônibus que fazia ao Rio.

“Ano de 1960. Era a primeira vez que iam à praia. Claro que não fora convidada, convidou-se, argumenta, para nos acompanhar na data em que comemorávamos o primeiro aniversário de casamento. Pois eu lhe digo, companheiro, para mal dos meus pecados, a velha extasiou-se ao descortinar o mar com as ondas roçando a areia. Logo em seguida, porém, escandalizou-se. Não, não pode ser, isso é falta de pudor, uma pouca vergonha, vociferou de repente, apontando para duas garotas que beijadas pelo sol, em maiô de duas peças, desfilavam displicentes em direção ao mar”.

“Onde se viu saírem assim peladas, quase nuas, mostrando barriga e pernas de fora para todo mundo enfiar os olhos. Nunca vim ao Rio, mas sei que no meu tempo de moça os modos eram outros”.

Nessa altura, Medeiros esboça um sorriso maroto e continua: — “Pois não é que a jararaca, sacando da bolsa uma revista de 1924, aponta o dedo para a página em preto e branco e grita aos meus ouvidos: — Veja, meu genro, isso é que era decência. Pôs à minha frente uma foto de banhistas em trajes típicos da época, ou melhor dizendo, embiocadas numa blusa sem decote enfeitada de rendas que se engolfava num ceroulão de brim esticado até os joelhos”.

“Veja bem, olhe com atenção a discrição das mulheres que caminham elegantes para o mar. As de hoje, essas que estão rolando por aí são um descalabro. Sem-vergonhice é assim. Encurtam as pernas do calção e deixam a barriga de fora. Bem que meu saudoso pai, Deus o tenha em bom lugar, sempre dizia — comer ou coçar só depende de começar”.

“Do arsenal heroico de provérbios que guardava, esse foi o principal anexim que ela detonou em nome da moral naquele dia. E olhe”, Medeiros zomba, “que o biquíni sacadão inventado por David Azupray nem era ainda sonhado, quando ela quase apoplexa completou furiosa a inventiva: — Pelo que vejo, tempo chegará em que essas lambisgoias aqui virão de traseiro de fora e peitos à mostra balouçando ao vento, Virgem Santíssima, Senhora protetora dos partos, o que vão tirar depois?”

“Despida profecia, já que o fio dental chegou em seguida para só cobrir...” Medeiros suspendeu a frase para não falar um palavrão e com malícia brejeira sussurrou-me, segredando: — “O pior aconteceu logo depois, quando me surpreendeu embevecido, distraindo os olhos na garota que transitava com os trejeitos da garota de Ipanema que Vinicius descreveu e eu cantarolava — que coisa mais linda, mais cheia de graça, é ela menina que vem e que passa num doce balanço a caminho do mar”.

“A velha percebeu. Me viu solfejando. Não me deu espaço. Agarrou-me com um puxão pelo braço e gargarejou vigilante aos meus ouvidos: — Toma tento, moço, isso que está passando não é para seu bico. É só para ver com os olhos e lamber com testa.

Apavorei-me com o provérbio, podia ser promessa de denúncia à minha mulher. Deixa disso, Dona Margarida, sou marido fiel, só tenho olhos para Nezinha, comigo não tem essa de comer e coçar. Eu sei, meu caro genro, eu sei, você é fidelíssimo, mas é daqueles que coçam antes pra comer depois”.

Dessa conversa divertida com Medeiros me lembrei ontem quando, entre meus guardados deparei com uma notícia, presumivelmente de 1964, publicada nos jornais, contando que em Sumaré um juiz de direito muito religioso baixara edital proibindo o uso de maiô de duas peças na piscina do clube da cidade. Pela feição folclórica, a providência, já na época recebida com hilaridade, levou as más línguas a dizerem que, logo no domingo seguinte, o recatado magistrado, vislumbrando uma garota que nadava usando o modelo vetado, ficou furioso, passando a adverti-la severamente: — Não sabe, moça, que aqui é proibido usar maiô de duas peças? A jovem atarantada pede desculpas. “Me perdoe, senhor juiz, me perdoe, não fiz por mal, estou pronta a obedecer, só me diga qual peça o senhor quer que eu tire”.

Pois é, à margem da fúria da sogra e da zanga do juiz que se inscrevem nas páginas do folclore, impõe-se não esquecer de que são as exteriorizações das alterações sócioeconômicas que, provocando um conflito de gerações, desafiam o homem na civilização em mudança. O confronto que não é de hoje, vem de muito longe.

No senado romano, acusando a degradação dos costumes e os vícios de seu tempo, Cícero (virtual ancestral da sogra de Medeiros) já vituperava: “Ó tempora, ó mores”. E essa colisão será sempre tanto mais atuante quanto mais intensas forem as aplicações práticas das descobertas tecno-científicas de uma época.

Pensar é um estado de espírito. Pensamos com os instrumentos de reflexão que o momento histórico oferece ao raciocínio com larga repercussão de ordem ético moral no conceito de vida. As gerações novas surgem sob a égide de uma instrumentalidade mui mais ágil que a anterior, plasmando um comportamento existencial que se diversifica na razão direta da distância que as separa. Assim, na era em que vivemos, parece também anedótico lembrar que em 1825, quando se inaugurou na Inglaterra a primeira linha de estrada de ferro do mundo, quase ninguém acreditava que um veículo pudesse “voar” a dezessete quilômetros por hora.

Quando o trem regressou, os jovens, dizendo que aquilo era o “futuro”, passaram a zombar dos velhos que não quiseram embarcar com medo de que a “maria-fumaça” fosse uma invenção do diabo. Com certeza, se estivesse lá, a sogra do Medeiros exorcizaria o primeiro trem que o deslizou no mundo.

* Professor e escritor, membro da Academia Campinense de Letras.


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