domingo, 16 de outubro de 2016

Ver, provar e crer


* Por Rubem Costa


Comparecer ao banco pagador, por onde recebe os seus proventos, para se recadastrar é rotina que, na sua periodicidade, todos os anos, aflige o servidor aposentado. Diga-se que, no caso, o recenseamento é um eufemismo, uma forma disfarçada de obrigar o vivente a provar - de corpo presente - que ainda não bateu as botas. Uma solenidade que, na sua exigência formal, representa um levantamento melancólico promovido pelo estado que enxerga no aposentado vivo um peso morto para a administração. Dentro do banco, a cena é cômica. Acomodado atrás do balcão, o jovem encarregado de contabilizar o saldo vivente, não se contém. Admirado de ver uma figura desuso que na sua frente ainda se move, pergunta-lhe estupefato - "tem certeza que o ‘João de Deus’, cujo nome está escrito aqui nesta folha, é o senhor mesmo? Sim, meu jovem, sou eu mesmo estampado nessa ficha, mas não se preocupe, ainda não é o atestado de óbito. Esse, talvez, chegue amanhã.

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Para viver, é preciso ser. Para ser é necessário ter. Para ser e ter, indispensável é provar. Probare opportet, non sufficit dicere, diz o provérbio latino. Não basta dizer, provar é necessário. É o fundamento do direito. Na linguagem jurídica, provar é manifestar, fazer patente, pôr em evidência, demonstrar a certeza ou a verdade do que se alega. Mas, desconfiados da alegação gratuita, os romanos logo impuseram uma legenda de responsabilidade - Affirmanti incumbiti probatio - A prova incumbe a quem afirma.

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Sófocles, diz a lenda, desafiando a acusação de demência senil que lhe atribuíam parentes sequiosos de seus bens, aos oitenta anos de idade, comparece ao severo tribunal heleno, onde, deslumbrando os atônitos juizes atenienses, oferta como prova de sua lucidez uma das mais importantes tragédias do mundo antigo, o Édipo em Colona que acabara de escrever. Embora a saga tenha servido a Cícero para, no Diálogo sobre a Velhice - saudar a idade provecta, confesso - e de mim para comigo eu digo - não me comove a intenção de provar coisa alguma a quem quer que seja, se não apenas a de evidenciar a mim mesmo o princípio cartesiano do cogito - penso, logo existo! Dedução que, como se sabe, contraditoriamente, adveio da hesitação. Da dúvida diante do mundo exterior, pela qual, quando pressupondo que tudo era falso, retirou René Descartes a surpreendente certeza de que, se assim podia pensar, era porque existia.

Certeza, entanto, que põe a consciência frente à inevitável dialética da interpenetração dos contrários a que nem a física se subtrai. O próprio Einstein, ao sugerir que a massa é simples energia congelada e que a energia é matéria liberada, terminou por anunciar - teoria da relatividade - que não há valores absolutos. Curiosamente, na esfera das oposições, um espiritualista, James Van Praagh, tomando carona na dedução cartesiana, ousa ir mais longe, quando, enfrentando a dicotomia do ser e do ter, admite que o pensamento é coisa. Tão real, diz ele, quanto os órgãos do nosso corpo, para concluir que a nossa vida cotidiana é o resultado daquilo que pensamos. Divergências à parte, nesta visão, todavia, importa considerar que a existência reflete um tempo incerto e um estado amorfo no qual - a exemplo de Xavier de Maistre, que viajava em redor de seus quarto - o homem, desde o nascimento, contrariando inclusive as regras do Discurso do Método, caminha imperceptível em torno de si mesmo, na perseguição de uma realidade que mordaz, desafiando o antigo preceito aristotélico - a verdade é o que é - nunca se mostra por inteiro.

Talvez, por essa suspeita que um velho alemão, Imanuel Kant, acreditando que o homem traz consigo o espaço e o tempo, afirmava que a realidade é um juízo assertório, ou seja, abrange tanto a afirmação quanto a negação, o que induz a admitir que a coisa em si mesma pode ser muito diferente do que parece, quando, em lugar da percepção, a vemos através da concepção. Ensino que me ajudou a compreender, adulto, a confusão que espreitei na primeira infância. Menino de colo, minha mãe, para fazer-me dormir, entoava baixinho a cantiga do Tutu Marambaia.

Enquanto o ninar escorria pelos meus ouvidos, me encolhia assustado nos braços mornos, fechando os olhos com medo da figura assombrada que se escondia no telhado. Inocente, Olívia, coitada, sequer suspeitava que a cantoria de paz ganhava dentro de mim os contornos de apavorante bicho-papão. Ao passo que ela, serena, me oferecia uma piedosa mentira, eu recolhia na mente uma dolorosa verdade. Vem daí que essa hipotética concepção do ser, que se instala na cronologia do homem, aparece também, em longitude e latitude, na extensão visual do espaço, ao longo de sua história. Para um garotinho de dois anos que se esforça por subir numa cadeira, o assento parece muito alto. Entretanto, para um gigante de mais de dois metros de altura, a cadeira não passa de um banquinho muito baixo.

Tudo depende da posição do observador. Fenômeno que encontra paralelismo, também, no terreno da física, a exemplo do que constatou o mesmo Einstein quando, na crítica dos quanta, alertava que o ato de observar muda o objeto que está sendo observado. Essa assimetria de avaliação leva o homem, desde o aparecimento na terra, a defrontar-se com uma estrada de duas mãos, onde o visível (e até palpável) se torna imaginário e o imaginário reflui para o concreto. Da incógnita exsurge o mito. Do sol, da lua, do mar, dos ventos, resultam Hélio, Selene, Netuno, Éolo. Ficções que, pela maré das crenças, retornam ao espírito como entidades concretas a dirigirem o destino dos seres.

E aí, na mistura do próximo e do remoto, chega um momento em que não se sabe mais onde fica ponto de fusão. Amplia-se a saga. Para fundamental o maior, os gregos dizem Zeus, enquanto os romanos proclamam: Júpiter. Nascem os alumiados. Na estampa pendurada na parede, São Jorge luta contra uma figura de cauda de serpente e garra de abutre. Sem discutir o improvável, o homem venera o santo e crê no dragão. Acrisolado entre a mais bela praia da terra e as mais trágicas favelas do mundo, o Rio de Janeiro entendeu o grande evento. Para não privar ninguém da mística consagração, decreta feriado municipal no dia do santo. E o dragão entra na festa. Coisas do Rio. Sem qualquer prova.

* Professor, escritor e membro da Academia Campinense de Letras.


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