quinta-feira, 13 de outubro de 2016

Mestre ou professor?


* Por Rubem Costa


Na manifestação do sentir, na rebentação das emoções ou no vôo místico da poesia, a palavra tem peso e medida. Irrupção mágica de sentimentos que transbordam da essência do ser, o vocábulo, prefigurando imagens, tracejando idéias, traz em si mesmo uma força significativa e exclusiva que lhe dá dimensão para definir e move a balança para decidir. Mas, essa manifestação expressiva, em que fala o ser em sua essência, implica numa avaliação de representação única que os dicionários não são capazes de traduzir, porque, na frieza do conceito, se perdem na busca da sinonímia e liberação de parecenças, às vezes aparentemente iguais, mas nunca perfeitas. Nela, na configuração verbal do termo, avultam contornos que a tornam peculiar e indivisível. É essa essencialidade que faz a magia da significação e erige o mistério que preside o vocábulo contabilizado no segredo da linguagem. Um encantamento guardado na combinação enigmática de sons e símbolos que reproduzem figuras e visões, risos e lágrimas, rogos e maldições numa extensão de sílabas e frases que, acomodadas no espaço e no tempo, se separam e se distinguem, formando os idiomas; línguas múltiplas, que se subdividindo, transbordam em dialetos regionais e gírias coletivas. Marcam a grandeza pátria do homem e a individualidade do ser na sua contingência grupal. É o alfa e o ômega em que se aninha o pensamento.

Do Egito dos Faraós (onde tudo demandava iniciação e cada mistério era representado por um deus) é que se irradiou o deslumbramento diante da origem inexplicável do vocábulo. Enigma que perturbava a mente dos sábios que, nele vendo o indecifrável, lhe consagraram uma divindade especial a que deram o nome de palavra. Dizem ainda que foi daí, dessa forma de adoração, que tiraram os gregos a doutrina do logos, concepção que levou São João a abrir o seu evangelho com o célebre intróito: — “no princípio era o verbo”... O mesmo verbo que a Bíblia revela, aflorado no Gênesis quando, depois de ser criado á imagem e semelhança de Deus, o homem, marcado pela desobediência, recebe a sua primeira e fundamental lição: — “do suor de teu rosto, comerás o pão...” Momento magistral em que Jeová se revela como o primeiro e máximo mestre do universo. Mestre, termo que com raízes no grego vem do latim — magister — aquele que compõe, que guia, que rege. É que naquele instante, o Mestre ensinava o ser a olhar para si mesmo, para sua nudez e existência, através da janela da vida. Era o homem sendo integrado à forma de agir e à responsabilidade de decidir. Interação da mente ao gesto. É sem dúvida por isso que nos Evangelhos, todos que se aproximam de Jesus o chamam de mestre e não de professor. Porque não há como confundir. Professor é aquele que, levado pela presunção, olha o ser pela janela da vaidade, enquanto o Mestre, tomado de afeto, olha o ser pela janela da vida. Assim, nas línguas em que a Bíblia é traduzida, a semântica não se mistura. Em inglês, por exemplo, no texto bíblico sempre aparece — master — e não teacher. Lucas, o evangelista, nos dá o modelo marcante de respeito ao gesto, quando conta o episódio — aqui transcrito em síntese — do moço rico que, aproximando-se de Jesus, lhe diz: — Bom Mestre, que farei para conseguir a vida eterna? E Cristo lhe retruca: “Por que me chamas bom? Não há bom senão um só, que é Deus. Se queres porem, entrar na vida eterna, guarda os mandamentos.” Disse-lhe o mancebo: “A todos tenho guardado desde a minha mocidade; que me falta ainda?” Disse-lhe o Mestre: “Se queres ser perfeito, vai, vende tudo o que tens, dá-os aos pobres e terás um tesouro no céu; só depois, vem e segue-me”. O magistério salutar calou fundo no apego aos bens da terra. O mancebo, pleno de usura, ouvindo a recomendação, não querendo despojar-se de suas propriedades, retirou-se aborrecido, de consciência machucada, sem olhar para trás. Era o homem aprendendo a mais difícil das lições: ser juiz de si mesmo.

Todavia, a antítese do bom ensino, a prática do anti-magistério não é difícil encontrar em nossas escolas, como bem evidencia a historinha produzida pelo Pedro Bloch que, na extinta revista Manchete, mantinha uma seção denominada Criança tem Cada Uma!. Uma aluna pequenina estava em classe com um livro aberto, quando a professora, vendo que se tratava da história de Jonas, disse-lhe que era fisicamente impossível uma baleia engolir um homem, porque, apesar de ser um mamífero muito grande, a sua garganta é bem pequena. A menina, entretanto, encantada com a lenda, insistiu em afirmar que era verdade, pois estava escrito no livro que Jonas foi engolido pela baleia. Sem compreender o poder de fantasia da criança, irritada com a teimosia, e esquecida de seu papel de orientadora, a professora asperamente advertiu a menina para deixar de ser teimosa, acrescentando: “Uma baleia não tem condição alguma para engolir um homem. E ponto final, não dou mais explicações.” A garotinha, inconformada e chorosa, então lhe disse: “Quando eu morrer e for ao céu, vou perguntar a Jonas.” A professora esbravejando, ainda mais severa, lhe pergunta: “E o que vai acontecer se Jonas tiver ido para o inferno?” Candidamente, a menina respondeu: “Então é a senhora que vai perguntar.”

PS. 70 anos de formatura. Amanhã, 28, é dia de reencontro. Conjugação de sonhos e refluir de esperanças. Volta ao tempo que se evolou num mundo que já não é. Relembranças de momentos, segmentos de horas. Instantes que marcam no painel da existência a saudade dos que tombaram, deixando com os que ficaram a saga de uma geração que cultuou a escola e acreditou na vocação do homem em busca de sua dignidade. Geração que se extingue no rebojo de uma era desalentada, mas que ainda traz guardado dentro de si o escrínio da respeitabilidade e acredita que a essência da alma é espelho da imagem de Deus. Uma visão do ser no transcorrer das horas inquietas. Há sete décadas, éramos setenta a receber na Escola Normal "Carlos Gomes" o título de mestre. O diploma, como papel, pouco importa. O que vale é a certeza de que, na corrida de revezamento, na transferência da tarefa, passamos o bastão de educador intacto, puro como o recebemos. Depois disso, ignoro ou desejo ignorar. O que sei e conservo, é a certeza de que, quando o último — ou a última — dos setenta se for, deixará esculpido na lápide do encantamento um epitáfio que servirá para todos:

“Foi mestre. Educou. Edificou gerações.”


* Escritor e membro da Academia Campinense de Letras. 

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