Resíduos
* Por
Assionara Souza
Minha mãe morreu aos
vinte e oito anos acometida de uma mudez aguda. Um dos piores silêncios que já
baixou sobre a minha família. Desses que a palavra fica presa dentro e se multiplica
agilmente. Assim como se um pensamento descritivo minucioso. Eu via isso quando
ela penteava o cabelo, aquele olho vítreo pro espelho, era a doença. Eu. Meu
olho via o olho dela. É um sinal que a doença dá. Principalmente nesses
momentos de início.
É uma doencinha muito
danada, essa. Afeta muito as mulheres da minha família. E não é loucura. Louca,
mesmo, teve uma minha tia avó chamada Joana. Mas Joana falava muito. Os homens
diziam que era ela a desvairada. Aceitou bem o diagnóstico. Tomou veneno e,
antes de morrer, urinou-se na sala grande da casa vomitando impropérios. O
demônio da palavra a habitava.
Minha mãe começou com
os silêncios dela, eu tinha oito anos. Os fios de cabelo que ficavam no pente,
tristeza infinita em cada gesto. Mínimos. Ínfimos. Olhava. As mãos de dedos
longos juntando cada sobra de existência. Os fios de cabelo quando se morre
ainda permanecem. A prova inorgânica.
Minha mãe tinha o
cabelo longo e os olhos tristes e distantes. Era já a doença. Olho pensante. Um
dia ela me deu um caderno com capa de flores. Ali, decidi. O que a doença
deixava escapar, eu juntava. Teve uma manhã, me arrumando pra escola, ela
disse: "estudo é uma coisa muito importante pra pessoa". Eu sorri
transbordante da figurinha para a coleção.
Escrevi. Letras
minhas. O remédio bom da palavra saindo dela. Cura. Minha mãe não falava nada
que não significasse. Meu pai era diferente. "Cuidado o carro";
"Olhe de um lado e outro". Meu pai sempre foi um homem matemático;
pensava muito em ficar rico. Má temática. Esquecia-se dos outros nessa idéia
infame. E mesmo porque matemática deste modo cru, mulher desfaz.
Minha vó, que também
quando decidiu silenciar enganou todo mundo, matou-se no devagar do secreto,
entendia muito bem contar luas e adivinhar ocultos mistérios. Dela anotei: 'a
língua é o chicote do corpo'. Talvez pensasse em tia Joana, a desvairada.
Porque mulher gosta muito da palavra. E quando falta, a doença chega.
Sorrateira. Sedutora. Eu sei que há muitas maneiras de se pegar essa doença.
Ainda mais que as mulheres da minha família têm muita facilidade para o
silêncio. É um descuido, e pronto! começam a parar olho demais numa coisa só,
boca cerrada, minimalismos.
A última filha que a
minha mãe teve já veio com a doença de nascença. A primeira palavra que falou
foi 'não'. Minha avó chamou minha mãe ao lado. Só se olharam. Porque também,
por mais que se tenha já essa coisa latente, esse silêncio aguardante, às vezes
é outra palavra que um diz pra aquela pessoa e já finca raiz a mudez absurda. A
palavra que não diz. Não adiantava nada meu pai falar. Trazer as coisas da rua,
do mundo, grugurejar notícias. O silêncio da doença não aceita forma alguma
palavra sem peso. Eu sei.
Pois aquele dia mesmo.
Eu ali, tanta espera o coração. Ouvi a voz. Aguardei. Atardescia sinfonicamente.
Não era? Lembras? Eu e tu. Tantas outras vezes. Me ouves, agora? Pois aquela
tarde tão grande e pronta pra sustentar a exata palavra. Por que não a
disseste? É impossível às mulheres da minha família suportar a falta da
palavra. Veio com uma força estúpida: o sintoma. Espalhou-se liquidamente o
silêncio rasgante dentro de mim. Foi por esse tempo, meus olhos desistiram de
ti; meus braços desistiram de ti. Meu corpo todo adoeceu da ausência de teu
gesto. Talvez aqui dentro há muito tempo venha eu tentando entender o início
desse meu esquecimento de vontade. São de uma inutilidade tremenda as novidades
que me trazes do mundo. A estúpida palavra pronunciada fisicamente.
As mulheres de minha
família sofrem do mal da palavra. Não há repouso em tua alma às coisas que eu
digo. Tua palavra não me atinge. Minha mãe morreu aos vinte e oito anos de
idade acometida de um silêncio absurdo. Somos, tu e eu, inimigos muito íntimos.
Meu olho no espelho vê.
*
Assionara Souza nasceu em Caicó (RN), em 1969. Mora em Curitiba. Leciona
Literatura Brasileira e Produção Textual. É mestranda em Estudos Literários
pela UFPR e estuda trânsitos entre literatura e artes plásticas na obra de
Osman Lins. Em 2005, publicou o livro de contos Cecília Não é um Cachimbo, pela
editora 7Letras.
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