Sujeito Zero (14)
* Por Sergio Vilas Boas
Seu Edmundo tomou o ônibus da linha
2832 lotado e sacolejante. Sentia estranhas vertigens, dor (leve) na altura da
nuca escorrendo pela espinha, vértebra por vértebra. Encostou a cabeça no
vidro da janela, mas as vibrações o enjoavam. O falatório dos passageiros só
aumentava o desconforto.
Fecha
lentamente a cortina dos olhos e equilibra a cabeça, preocupado em manter a
boca fechada, pois certamente irá cochilar. Não quer, antes de tudo, ser alvo
de chacota para os adolescentes e estudantes que fazem uma algazarra dos diabos
dentro do ônibus.
Ouve
passageiros mais atrás reclamarem do motorista a cada parada brusca. Transporta
animais? Independentemente disso, a entrada de mais pessoas significa forçar as
de trás a se contorcerem para que a porta hidráulica possa se abrir. Os degraus
estão apinhados de gente.
A cobradora,
personagem explorada pelo Fantástico precisamente por ser a primeira no país a
entrar para aquela profissão majoritariamente masculina, é uma senhora em idade
de descansar e ajudar a criar os netos. Ela não se entende com o motorista. A
tensão aumenta. Que tensão? Convenhamos: meu Sujeito Zero dispensa tensões.
Seu Edmundo
pressente os acontecimentos e desiste de conter sua curiosidade. A voz do
motorista tira o cérebro do pai de Alma de um estado de frouxidão generalizada.
De vez em quando, beliscões no peito, intermitentes, suspeitos, infundem-lhe
maus presságios.
Desabotoa a
gola da camisa embora nada facilite a respiração. Quer, entretanto, aliviar a
consciência sobre as atitudes que não toma em relação ao coração e aos pulmões.
Ou até, quem sabe, comparecer à consulta médica marcada com muita antecedência.
Nota a saturação ao redor, mesmo de olhos fechados, pois não precisa abri-los.
Se não fosse
tão alheio, poderia comprar um carro, um VW/Brasília 1979, como o de Vicente, e
nunca mais enfrentar a maldita linha 2832, a única que atendia ao Jardim Nova York.
Os coletivos da 2832 demoravam a passar e, quando vinham, só podiam estar
lotados. Por outro lado, como comprar carro em um país que inventa moedas que
não valem nada?
Ele não
aprendeu a dirigir. Acho que nem considerou a hipótese. Recusou-se
terminantemente a fincar pé no seu século, a demarcar sua independência. Até o
mais ingênuo ou o mais desgraçado dos mortais associa automóvel a individualidade.
Ele, não. Ele falava de carro como quem fala de um presídio. A pobreza sempre
pôde ser opcional ou provocada. Mas não ambicionar certas coisas, Alma, não
sei, não. Isso me faz pensar nele como um repolho ou um passarinho.
Costumo dar
razão a quem contraria a naturalidade de obras impensadas. Há mesmo muitas
implicações em comandar uma máquina locomotora. Para uma solução, criam-se
milhares de problemas.
Além disso,
dirigir exige pré-requisitos como determinação, paciência, autonomia de pensamento
e disciplina, atributos tão importantes quanto a decisão de virar à esquerda ou
à direita; subir ou descer; parar, prosseguir.
Os carros
transportam o fluxo de todos nós: o perigo, a coragem, os sobressaltos, o
destino, a volta, a reviravolta, a auto-estima. Com o “bônus” de se poder ir
para frente e para trás, capacidade que a realidade só comporta na imaginação.
Posso
avançar ou voltar homepages, mudar
endereços eletrônicos instantaneamente. Mas é diferente. Não existe o sagrado
movimento físico do automóvel. Pilotar um computador implica manter a bunda no
mesmo lugar.
- Das
Graças, desarrolha a porta, porra. (Berra
o motorista com seu vozeirão rudimentar).
A cobradora
Das Graças luta para manter a porta fechada. Que velha persistente. A porta
traseira está a seu alcance, assim como estão ao alcance da porta os que viajam
nos degraus como pombos sobre a rede elétrica. Alguns deviam estar apenas
aguardando o momento de fugir assim que a porta abrir. Ou a abrirão com as
próprias mãos, à força, a fim de sair sem pagar. Não existe esse negócio de
escrúpulo.
Das Graças
sabe, de ouvir dizer, que os estudantes ainda por cima fazem pouco dela ao lhe darem o cano. O próprio Seu
Edmundo testemunhou essas obscenidades muitas vezes. Um garoto albino, por exemplo,
uma vez botou a mão na braguilha e disse: “Aqui, oh! Foda-se, velhota do
Fantástico”.
A
irresponsável provocação era dirigida a uma mulher enrugada, magra, exausta,
trabalhando em atividade que pouco ajuda a depurar o espírito. Das Graças não
pôde olhar. Acostumara-se às recorrências do episódio. Alguns passageiros
disfarçam, outros gargalham. Poucos balançam a cabeça em sinal de repúdio.
Intolerante com aquele desassossego, Seu Edmundo se revolta. Por dentro ele
devia ser um revoltado. Todo indivíduo é, na verdade, dependendo da imagem que
tem e do que observa.
Os beliscões
no peito e a falta de ar sossegaram.
* Jornalista, escritor e
professor. Editor do portal TextoVivo Narrativas da Vida Real (www.textovivo.com.br); vice-presidente
da Academia Brasileira de Jornalismo Literário (ABJL). Autor de “Os
Estrangeiros do Trem N” (1997), “Biografias & Biógrafos” (2002) e “Perfis”
(2003), entre outros. E-mail: svilasboas@textovivo.com.br.
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