Faces, não
fases
O artista, em especial o poeta, desenvolve, com anos de
exercício, a aptidão de explorar, sutilmente, o subconsciente, à cata de
emoções que lhe sirvam de matéria-prima para maravilhosas obras de arte. Sons,
imagens, odores, sensações agradáveis ditadas pelos cinco sentidos, são
transformados por esses criadores (que valorizam e dão nobreza à vida humana)
em melodias, telas, esculturas, palavras que formam metáforas bem ajustadas e
harmoniosas. Com o talento de que são dotados, nos transmitem suas emoções, às
quais agregamos as nossas, ditadas por nossa própria experiência pessoal.
Há quem entenda que o poeta expresse, ou deva expressar,
aspectos da sua vida pessoal em sua obra. Nem sempre. Pode fazê-lo ou não. Não
se trata de nenhuma regra arbitrária que deva, necessariamente, ser seguida.
Há, por exemplo, os que levam uma vida estritamente virtuosa e exemplar e cujos
versos são um permanente convite ao pecado. Em contrapartida, existem os que
são rematados pilantras (bandidos, até), mas seus poemas são de uma pureza
franciscana.
Um exemplo bastante característico deste último caso é o de
François Villon. Poucos homens foram culpados de crimes mais torpes do que ele.
Contudo, poucos, pouquíssimos, raros, raríssimos poetas expressaram pensamentos
mais puros. Quem lê seus poemas, sem conhecer nada a seu respeito, vai pensar
que se trate de algum santo, que tenha sido canonizado pelo papa e seja
passivo, portanto, de ser adorado nos altares. Todavia, pelo menos nesse caso,
nada está mais longe da realidade.
Outra afirmação com a qual não concordo é a de que um poeta
tem muitas “fases” na vida e em cada uma delas, sua poesia adquire determinada
característica, estilo próprio, uma certa forma, diferente das anteriores, de
se expressar. Tolice. A pessoa é uma só. O que pode, eventualmente, variar é a
maneira de expressão (não raro, nem isso sequer varia). Concordo, pois,
plenamente com Ivan Junqueira quando afirma: “O poeta não tem fases, mas
faces”. E não se trata, estejam certos, de mero jogo de palavras, de simples
trocadilho.
A respeito dessa figura lendária, com voz de anjo e atitudes
de demônio, que foi François Villon, o poeta Iosito Aguiar escreveu, na
“Revista de Cultura” nº 4/4, de 20 de novembro de 2000: “...Nasceu em 1431 e
faleceu depois de 1463, embora não se saiba o ano exato. Sua vida foi a mais
estranha das simbioses. Era triste, mau, alegre, louco, magro e desprezível; um
feixe de pele, ossos e fogo. Anguloso, inquieto e nervoso. ‘Seco e escuro como
um cigano’, segundo ele próprio. O lábio superior desfigurado por um golpe de
adaga, olhos voltados em furtiva obliqüidade e para o salto súbito de um
possível gendarme escondido na sombra. Era o mais hábil e vil ladrão de Paris e
o maior poeta da França a seu tempo”.
“Estranho paradoxo!”, deve estar pensando o leitor. Seu nome
verdadeiro era François de Montcorbier. Conheceu, desde o berço, a extrema
miséria. Foi criado, conforme Iosito enfatiza, à base de “folhas de nabos e
maldições”, como ocorre, hoje, com milhões de crianças no Brasil e pelo mundo
afora. A fome foi a sua mais constante companheira e lhe despertou o instinto
de sobrevivência, mas pelo lado puramente animal, nem um pouco racional. Para
combatê-la, por exemplo, aprendeu a roubar, inicialmente os armazéns nas vizinhanças
de onde morava e, posteriormente, tudo e todos que visse pela frente. Sua
educação para a vida, portanto, começou pelas técnicas do furto. Péssimo
começo, não é mesmo?!
Para complicar, perdeu o pai cedo. A mãe, impotente para
criá-lo e, sobretudo, para educá-lo, não viu outro recurso senão entregar o
menino, então com 12 anos, à tutela de um parente distante, o padre Guilhaume
de Villon. Este vislumbrou, naquele garoto esquálido e esquivo, enorme
potencial, aguda inteligência e inata vocação para a vida religiosa. Quanta
ingenuidade! Afeiçoou-se tanto ao menino, a ponto de lhe dar o próprio nome.
Percebeu, no entanto, muito cedo, que o pequeno François, embora dotado de ágil
raciocínio, era absolutamente avesso a qualquer tipo de autoridade. Ainda assim,
achou que o garoto daria um bom sacerdote e apostou nessa possibilidade.
Em 1443, matriculou-o na Universidade de Paris. Inteligente
como era, o jovem se deu bem no meio universitário. Conseguiu, inicialmente, o
título de bacharel e, posteriormente, o de professor. Saiu da instituição com a
fama de excelente aluno, de inspiradíssimo poeta, mas... de mestre nas artes da
malandragem. Passou a levar vida dupla e totalmente desregrada. Durante as
tardes, compunha poemas belíssimos, de extrema sensibilidade. Nas noites,
porém, dedicava-se à devassidão e roubos. E as manhãs, claro, reservava para
dormir (afinal, ninguém é de ferro).
Iosito escreve a respeito desse período da vida do poeta:
“Aos 20 anos, François Villon já havia seduzido muitas mulheres; aos 24,
assassinado um padre, aos 25, tornara-se um dos principais membros da
Conqueville (Cavalheiros do Punhal), malta demoníaca de trapaceiros, gatunos,
bandoleiros, arrombadores, batedores de carteiras, salteadores de estradas,
assassinos, rufiões que fizeram do século XV uma época de terror”. E suas
poesias? Mudaram de temática e se tornaram debochadas, imorais e maldosas, como
ele havia se tornado? Muito pelo contrário! Eram cada vez mais puras e mais
sensíveis.
Um dos poemas mais belos e marcantes que François Villon nos
legou é este, intitulado “Balada das coisas sem importância”, que peço licença
ao paciente leitor para reproduzir:
“Conheço se há moscas no leite,
Conheço pela roupa o homem,
Conheço e tédio e o deleite,
Conheço a fartura e a fome,
Conheço a mulher pelo enfeite,
Conheço o princípio e o fim,
Conheço pela chama o azeite,
Conheço tudo, menos a mim.
Conheço o gibão pela gola,
Conheço o rico pelo anel,
Conheço o fiel pela sacola,
Conheço a monja pelo véu,
Conheço o porco pela tripa,
Conheço o irmão pelo latim,
Conheço o vinho pela pipa,
Conheço tudo, menos a mim.
Conheço a mula e o cavalo,
Conheço o carro e a carreta,
Conheço a galinha e o galo,
Conheço o sino e a sineta,
Conheço a flor pelo talo
Conheço Abel e Caim,
Conheço o pote e o gargalo,
Conheço tudo, menos a mim.
Príncipe, conheço tudo em suma,
Conheço o branco e o carmim
E a morte que o fim consuma,
Conheço tudo, menos a mim”.
Não se sabe, exatamente, em que circunstâncias esse devasso,
rufião, bandoleiro e assassino morreu. Uns dizem que foi executado em uma
prisão. Outros, afirmam que conseguiu fugir do cárcere e terminou seus dias à
míngua, abandonado e só numa caverna, vítima da fome, que o transformou no
monstro que foi. Quase tudo a seu respeito transformou-se em lenda que, a cada
narrativa, acrescenta ou tira detalhes.
Seu epitáfio, bastante revelador, contudo, sobreviveu ao
tempo e diz bem o que François Villon foi: “Este bastardo inútil e desmiolado
devolveu o seu corpo à terra, nossa mãe comum. Os vermes não encontrarão muito
o que comer nele, pois a fome já o roeu até quase os ossos...Não conheceu o
descanso até que a morte chegou e deu-lhe um pontapé para fora do mundo. Deus
misericordioso, tende piedade da sua alma e concedei-lhe paz eterna”.
Pelo exposto, concluo que o poeta mexicano, Octávio Paz,
está coberto de razão quando afirma: “Os poetas não têm biografia. Sua obra é
sua biografia”. Ou seja, têm que ser avaliados pelo que escreveram e só. E o
que viveram? Bem, isso importa apenas a eles e aos seus descendentes (caso
hajam deixado algum, é claro)!
Boa leitura!
O Editor.
Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk
Difícil imaginar um afastamento tão grande entre a obra e a vida de um escritor. A interessante história de François Villon já foi contada aqui.
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