A desterritorialização e a perda de sentido dos excluídos. A
reterritorialização a partir das cidades.
* Por Urda Alice Klueger
INTRODUÇÃO
Não é neste momento do começo do século XXI que o
mundo urbano passa a ser o refúgio dos que já não tem refúgio, dos seres
humanos desterritorializados do seu torrão de origem: inúmeras são denúncias
feitas através da Literatura e da História desde tempos antigos: citamos o
exemplo do romancista Victor Hugo (Os
Miseráveis, escrito no século XIX); os pesquisadores Anne e Serge Golon,
com a série Angélica (escrito no
século XX, mas trazendo à luz pesquisas sobre o século XVII) e tantos dados que
se têm sobre tempos como os do Império Romano[1],
dentre outros tempos.
Raras são as obras de Literatura que nos trazem
heróis que se refugiam na mata e/ou no rural como reterritorialização e busca
de sentido para suas vidas, como o caso de Robin
Hood, herói mítico inglês. Na grande maioria das vezes, as denúncias
literárias ou referências históricas sobre o destino dos deserdados da sorte nos conduzem ao refúgio
das cidades.
Neste começo de novo milênio a situação da
população mais desvalida se alterou em muito pouco, e é sobre tal situação que
pretendemos discutir neste artigo: a(s) relação(s) das gentes mais pobres da
nossa sociedade com o mundo urbano que lhe serve de refúgio e lhe
retorritorializa, mesmo que nem sempre venha a lhe devolver o sentido perdido
da(s) sua(s) vida(s) .
1. OS CAMINHANTES
Logo no começo do milênio fazíamos o trajeto
Blumenau/Florianópolis todas as semanas, além de percorrermos outras estradas
em diversas direções, principalmente no Estado de Santa Catarina, e se tornava
impossível não se prestar atenção a determinado tipo de viajante que sempre
estava em tais trajetos, viajantes que não houvera em passado próximo: os
caminhantes, quase sempre homens, solitários, em dupla ou pequeníssimos grupos,
sujos, barbados, com nada ou pouquíssima coisa de bagagem. Via de regra, tais
caminhantes eram homens – muito raramente uma mulher os acompanhava. Passamos a
prestar sempre mais atenção a eles, curiosa com o fato de nunca pedirem carona,
enquanto inúmeros veículos trafegavam ao seu lado[2].
Sempre que possível, passamos a falar com tais homens, tentando saber mais do
seu universo e da sua realidade, e em setembro de 2003 escrevemos a crônica
intitulada Também temos as vinhas da ira[3]
(Anexo 1), publicada inicialmente no Jornal Diário Catarinense[4],
a qual provocou diversas manifestações de leitores.
Nestes tempos de comunicação rápida, não nos
surpreendeu muito recebermos uma manifestação da cidade de Joanesburgo/África
do Sul, mas sim o teor da mensagem recebida: Ulemo Mtekateka, de lá, nos dizia
que:
Muito lindo, o seu
texto, e só para clarificar, aqui na República da África do Sul também existem
esses tipos, também só homens, também sujos, também com fome e sem mulheres.
(...) E aqui, também, aliás, principalmente,
ninguém pára para fazer as perguntas, porque a maioria é negra. Há alguns
brancos, mas esses têm um sistema de apoio, deixado pelo governo anterior.”
Portanto, o fenômeno dos caminhantes era muito mais
amplo do que pensáramos anteriormente, e então escrevemos como que uma segunda
crônica chamada Ainda as vinhas da ira,
publicada uma semana depois no mesmo jornal Diário Catarinense[5].
Nossa atenção e preocupação em relação ao fato havia aumentado, e passamos cada
vez mais a aproveitar as oportunidades que surgiam para tentarmos contato com
esses homens que caminhavam entre as cidades, e que depois se internavam nelas,
vivendo nos seus esconsos, como em casas abandonadas, sob pontes e marquises,
em albergues públicos, etc.
Nem sempre tal contato foi fácil: diversos homens
contatados estavam sob efeito de álcool ou de alguma droga e pouco conseguiam
acrescentar ao nosso interesse, mas diversos deles se encontravam perfeitamente
lúcidos e se detiveram a conversar demoradamente, respondendo a tudo o que
perguntávamos.
Alguém de quem lembramos muito é de um homem que se
chamava Antônio. Encontramo-lo como aos demais, sujo, barbado e com os cabelos
compridos, pedindo algum dinheiro para poder comer. Almoçamos juntos e
conversamos longamente. Sua história não diferia muito da de outros: morador de
Criciúma/SC, desterritorializara-se ao ouvir falar que no norte do estado havia
emprego e, de bicicleta, empreendera a longa viagem de cerca de 350 km até a cidade de
Joinville/SC, onde não encontrara emprego algum. Continuara, no entanto, a
procurar trabalho nas cidades vizinhas, até que a fome obrigou-o a vender a
bicicleta para transformá-la em alimento. É de se imaginar que a essa altura
sua imagem já estivesse alterada pela sujeira, má alimentação
e falta de cuidados, o que dificultara ainda mais o encontro do emprego sonhado,
e que uma perda de sentido estava a minar-lhe as forças e a resistência. Houve
um momento limite, onde Antônio entendeu que o melhor que faria seria voltar
para a sua cidade natal, onde tinha diversos familiares que poderiam ajudá-lo,
e encetou a longa viagem de volta à pé, já agora sem praticamente nenhuma
bagagem além de uma garrafa para carregar água e uma pequena sacola de
plástico, e foi na metade desta sua volta que o encontramos.
Antônio nos contou muitas coisas, mas em nenhum
momento falou da possibilidade de ter ido em busca de uma reterritorialização
na área rural. O que nos falou sobre as regiões rurais por onde passou foram
coisas ruins. Muito lhe doía o tratamento dado nas áreas rurais a pessoas como
ele. Uma das coisas que mais lhe doía (e que seria confirmada por outros
caminhantes, em outras conversas) era a forma como as pessoas do campo reagiam
diante de tais seres: a aproximação de residências campestres, mesmo as
situadas à beira das principais estradas, causava profundas reações de repúdio
nos moradores.
- Saíamos para viajar com a nossa garrafa de água e
na metade do dia a água acabava, e então havia que se pedir água em alguma
casa...
As lembranças de Antônio eram cruéis. Longe de
alguma cidade, a única fonte de água era a casa de algum agricultor, e ele (e
outros, certamente) se aproximavam respeitosamente, e batiam palmas, este nosso
antigo costume trazido desde a Ásia pelas navegações portuguesas[6].
Queriam água, precisavam de água, quiçá conseguissem algum alimento, e o
respeito era mais do que necessário, mas não era compreendido. As populações
rurais temiam pela própria segurança, e açulavam os cães contra os viajantes,
quando não os recebiam a pedradas e impropérios.
- Temiam que nós os roubássemos, temiam que
roubássemos suas crianças – explicaram-me Antônio, e também outros com quem
falamos.
Havia que amargar a sede, então, e ir embora, até
se deparar com um ribeiro, um posto de gasolina ou algo assim. Havia um outro
dado que nos chamava a atenção:
- Muitas vezes nos chamavam de ciganos... – o que
denota um outro preconceito sobre essa gente que tem uma territorialidade
própria e móvel sobre o qual não ouvíamos falar há décadas, mas que deve estar
latente na população, o que poderia dar origem a um estudo específico.
Tomamos Antônio como exemplo, mas ele é como que um
somatório das muitas conversas que tivemos com caminhantes desterritorializados
nas estradas do sul do Brasil. Simplificando as
observações dos contatos que tivemos, dizemos que praticamente todos tinham
como meta a cidade próxima, ou alguma cidade[7].
Sua segurança era a cidade. Na pior das hipóteses,
na cidade haveria lixo onde poderiam procurar alimento e outras coisas, ou
mesmo uma festa de Natal organizada por mendigos e catadores de lixo, conforme
a crônica constante no Anexo 2. As cidades produziam água potável para as suas
garrafas de plástico, tanto em bares quanto em pontos de táxis, postos de
gasolina, chafarizes, etc. As cidades produziam cozinhas comunitárias e
albergues organizados pelas prefeituras, por religiosos ou por ONGs, além da
alternativa do lixo, que além de conter comida, continha outras coisas que
poderiam ser encontradas e vendidas, como papelão ou latinhas de refrigerante.
As cidades tinham abrigos para a chuva, como marquises, a parte inferior das
pontes, casas abandonadas, conforme já falamos, e outros. As cidades tinham
como que “irmandades” de outras pessoas tão desvalidas, desterritorializadas e
sem sentido de vida quanto as que conhecemos – nas cidades podia-se alugar um
carrinho coletor de lixo e pagar o aluguel com a própria produção do próprio
trabalho, quiçá até comprar o carrinho, se esses homens tivessem sorte e
trabalhassem muito. Nas cidades poderia até acontecer o milagre do tão sonhado
emprego. Se chegasse o inverno e o frio fosse muito grande, prefeituras e
organizações humanitárias distribuíam cobertores para esses homens que vínhamos
observando nas estradas sempre
a caminhar. Em caso de doença, as cidades tinham hospitais
e outros recursos que só nelas existia. Nas cidades sempre se podia pedir
alguma coisa, como comida ou dinheiro, pois quase sempre havia alguém que dava.
- Se bem que é mais fácil nos darem cachaça do que
pão... – explicou-nos um velhinho – e cito tal coisa aqui porque faz-nos
descortinar a existência de uma outra camada da população sobre a qual costumamos
não lembrar, a dos bebedores de álcool, que, pelo visto, é mais generosa do que
o cidadão comum.
E nas cidades, também, havia as mulheres e as
crianças. Entendemos então porque as mulheres não estavam nas estradas
caminhando: a existência das crianças prendiam-nas às cidades, faziam com que
lá sobrevivessem, mesmo que em empregos menores ou degradantes, pois era mister
que as crianças sobrevivessem.
Se um homem daqueles que se movimentava entre as
cidades tivesse sorte, poderia ser aceito por uma daquelas mulheres e ir morar
no seu quartinho ou outro abrigo precário, e então teria como banhar-se, cortar
a barba, quem sabe conseguir roupas limpas, tornando-se de novo apto a procurar
emprego, e sua sorte poderia mudar a partir de uma mulher. Eram muitas as
maravilhas que uma cidade oferecia a quem não tinha nada, a quem era
escorraçado por cachorros e pedradas da área rural.
Há que se pensar, também, que tais relações e redes
de relações que se criam nas cidades são próprias dessa população excluída –
que mesmo quando um desvalido dorme sob a mais luxuosa das marquises, em pontos
valorizados das cidades, não faz ele parte daquele lugar, mas pertence a um
outro extrato social, a uma outra população que se “infiltra” nas diversas
áreas das diversas classes, mas que pertence a um mundo periférico e que habita
lugares de baixa qualidade e esconsos muitas vezes impensados. De qualquer
forma, é a cidade o seu abrigo e o seu destino, é na cidade que ele consegue
sobreviver.
(CONTINUA)
Trabalho
apresentado à Disciplina de Multiterritorilidade, modernidade-mundo e vínculos
territoriais, ministrada pelo Prof. Dr. Álvaro Luiz Heidrich, do Programa de
Pós-graduação em Geografia (Doutorado), da Universidade Federal do Paraná.
* Escritora de Blumenau/SC, historiadora e
doutoranda em Geografia pela UFPR, autora de mais três dezenas de livros, entre
os quais os romances “Verde Vale” (dez edições) e “No tempo das tangerinas” (12
edições).
Em todos os lugares, levas de excluídos, em suas várias formas.
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