quarta-feira, 3 de junho de 2015

A desterritorialização e a perda de sentido dos excluídos. A reterritorialização a partir das cidades.


* Por Urda Alice Klueger



INTRODUÇÃO

Não é neste momento do começo do século XXI que o mundo urbano passa a ser o refúgio dos que já não tem refúgio, dos seres humanos desterritorializados do seu torrão de origem: inúmeras são denúncias feitas através da Literatura e da História desde tempos antigos: citamos o exemplo do romancista Victor Hugo (Os Miseráveis, escrito no século XIX); os pesquisadores Anne e Serge Golon, com a série Angélica (escrito no século XX, mas trazendo à luz pesquisas sobre o século XVII) e tantos dados que se têm sobre tempos como os do Império Romano[1], dentre outros tempos.

Raras são as obras de Literatura que nos trazem heróis que se refugiam na mata e/ou no rural como reterritorialização e busca de sentido para suas vidas, como o caso de Robin Hood, herói mítico inglês. Na grande maioria das vezes, as denúncias literárias ou referências históricas sobre o destino dos  deserdados da sorte nos conduzem ao refúgio das cidades.

Neste começo de novo milênio a situação da população mais desvalida se alterou em muito pouco, e é sobre tal situação que pretendemos discutir neste artigo: a(s) relação(s) das gentes mais pobres da nossa sociedade com o mundo urbano que lhe serve de refúgio e lhe retorritorializa, mesmo que nem sempre venha a lhe devolver o sentido perdido da(s) sua(s) vida(s) .


1. OS CAMINHANTES

Logo no começo do milênio fazíamos o trajeto Blumenau/Florianópolis todas as semanas, além de percorrermos outras estradas em diversas direções, principalmente no Estado de Santa Catarina, e se tornava impossível não se prestar atenção a determinado tipo de viajante que sempre estava em tais trajetos, viajantes que não houvera em passado próximo: os caminhantes, quase sempre homens, solitários, em dupla ou pequeníssimos grupos, sujos, barbados, com nada ou pouquíssima coisa de bagagem. Via de regra, tais caminhantes eram homens – muito raramente uma mulher os acompanhava. Passamos a prestar sempre mais atenção a eles, curiosa com o fato de nunca pedirem carona, enquanto inúmeros veículos trafegavam ao seu lado[2]. Sempre que possível, passamos a falar com tais homens, tentando saber mais do seu universo e da sua realidade, e em setembro de 2003 escrevemos a crônica intitulada Também temos as vinhas da ira[3] (Anexo 1), publicada inicialmente no Jornal Diário Catarinense[4], a qual provocou diversas manifestações de leitores.

Nestes tempos de comunicação rápida, não nos surpreendeu muito recebermos uma manifestação da cidade de Joanesburgo/África do Sul, mas sim o teor da mensagem recebida: Ulemo Mtekateka, de lá, nos dizia que:

Muito lindo, o seu texto, e só para clarificar, aqui na República da África do Sul também existem esses tipos, também só homens, também sujos, também com fome e sem mulheres. (...) E aqui, também, aliás, principalmente, ninguém pára para fazer as perguntas, porque a maioria é negra. Há alguns brancos, mas esses têm um sistema de apoio, deixado pelo governo anterior.”

Portanto, o fenômeno dos caminhantes era muito mais amplo do que pensáramos anteriormente, e então escrevemos como que uma segunda crônica chamada Ainda as vinhas da ira, publicada uma semana depois no mesmo jornal Diário Catarinense[5]. Nossa atenção e preocupação em relação ao fato havia aumentado, e passamos cada vez mais a aproveitar as oportunidades que surgiam para tentarmos contato com esses homens que caminhavam entre as cidades, e que depois se internavam nelas, vivendo nos seus esconsos, como em casas abandonadas, sob pontes e marquises, em albergues públicos, etc.

Nem sempre tal contato foi fácil: diversos homens contatados estavam sob efeito de álcool ou de alguma droga e pouco conseguiam acrescentar ao nosso interesse, mas diversos deles se encontravam perfeitamente lúcidos e se detiveram a conversar demoradamente, respondendo a tudo o que perguntávamos.

Alguém de quem lembramos muito é de um homem que se chamava Antônio. Encontramo-lo como aos demais, sujo, barbado e com os cabelos compridos, pedindo algum dinheiro para poder comer. Almoçamos juntos e conversamos longamente. Sua história não diferia muito da de outros: morador de Criciúma/SC, desterritorializara-se ao ouvir falar que no norte do estado havia emprego e, de bicicleta, empreendera a longa viagem de cerca de 350 km até a cidade de Joinville/SC, onde não encontrara emprego algum. Continuara, no entanto, a procurar trabalho nas cidades vizinhas, até que a fome obrigou-o a vender a bicicleta para transformá-la em alimento. É de se imaginar que a essa altura sua imagem já estivesse alterada pela sujeira, má alimentação e falta de cuidados, o que dificultara ainda mais o encontro do emprego sonhado, e que uma perda de sentido estava a minar-lhe as forças e a resistência. Houve um momento limite, onde Antônio entendeu que o melhor que faria seria voltar para a sua cidade natal, onde tinha diversos familiares que poderiam ajudá-lo, e encetou a longa viagem de volta à pé, já agora sem praticamente nenhuma bagagem além de uma garrafa para carregar água e uma pequena sacola de plástico, e foi na metade desta sua volta que o encontramos.   

Antônio nos contou muitas coisas, mas em nenhum momento falou da possibilidade de ter ido em busca de uma reterritorialização na área rural. O que nos falou sobre as regiões rurais por onde passou foram coisas ruins. Muito lhe doía o tratamento dado nas áreas rurais a pessoas como ele. Uma das coisas que mais lhe doía (e que seria confirmada por outros caminhantes, em outras conversas) era a forma como as pessoas do campo reagiam diante de tais seres: a aproximação de residências campestres, mesmo as situadas à beira das principais estradas, causava profundas reações de repúdio nos moradores.    
- Saíamos para viajar com a nossa garrafa de água e na metade do dia a água acabava, e então havia que se pedir água em alguma casa...

As lembranças de Antônio eram cruéis. Longe de alguma cidade, a única fonte de água era a casa de algum agricultor, e ele (e outros, certamente) se aproximavam respeitosamente, e batiam palmas, este nosso antigo costume trazido desde a Ásia pelas navegações portuguesas[6]. Queriam água, precisavam de água, quiçá conseguissem algum alimento, e o respeito era mais do que necessário, mas não era compreendido. As populações rurais temiam pela própria segurança, e açulavam os cães contra os viajantes, quando não os recebiam a pedradas e impropérios.
- Temiam que nós os roubássemos, temiam que roubássemos suas crianças – explicaram-me Antônio, e também outros com quem falamos.

Havia que amargar a sede, então, e ir embora, até se deparar com um ribeiro, um posto de gasolina ou algo assim. Havia um outro dado que nos chamava a atenção:
- Muitas vezes nos chamavam de ciganos... – o que denota um outro preconceito sobre essa gente que tem uma territorialidade própria e móvel sobre o qual não ouvíamos falar há décadas, mas que deve estar latente na população, o que poderia dar origem a um estudo específico.

Tomamos Antônio como exemplo, mas ele é como que um somatório das muitas conversas que tivemos com caminhantes desterritorializados nas estradas do sul do Brasil. Simplificando as observações dos contatos que tivemos, dizemos que praticamente todos tinham como meta a cidade próxima, ou alguma cidade[7].  

Sua segurança era a cidade. Na pior das hipóteses, na cidade haveria lixo onde poderiam procurar alimento e outras coisas, ou mesmo uma festa de Natal organizada por mendigos e catadores de lixo, conforme a crônica constante no Anexo 2. As cidades produziam água potável para as suas garrafas de plástico, tanto em bares quanto em pontos de táxis, postos de gasolina, chafarizes, etc. As cidades produziam cozinhas comunitárias e albergues organizados pelas prefeituras, por religiosos ou por ONGs, além da alternativa do lixo, que além de conter comida, continha outras coisas que poderiam ser encontradas e vendidas, como papelão ou latinhas de refrigerante. As cidades tinham abrigos para a chuva, como marquises, a parte inferior das pontes, casas abandonadas, conforme já falamos, e outros. As cidades tinham como que “irmandades” de outras pessoas tão desvalidas, desterritorializadas e sem sentido de vida quanto as que conhecemos – nas cidades podia-se alugar um carrinho coletor de lixo e pagar o aluguel com a própria produção do próprio trabalho, quiçá até comprar o carrinho, se esses homens tivessem sorte e trabalhassem muito. Nas cidades poderia até acontecer o milagre do tão sonhado emprego. Se chegasse o inverno e o frio fosse muito grande, prefeituras e organizações humanitárias distribuíam cobertores para esses homens que vínhamos observando nas estradas sempre a caminhar. Em caso de doença, as cidades tinham hospitais e outros recursos que só nelas existia. Nas cidades sempre se podia pedir alguma coisa, como comida ou dinheiro, pois quase sempre havia alguém que dava.
- Se bem que é mais fácil nos darem cachaça do que pão... – explicou-nos um velhinho – e cito tal coisa aqui porque faz-nos descortinar a existência de uma outra camada da população sobre a qual costumamos não lembrar, a dos bebedores de álcool, que, pelo visto, é mais generosa do que o cidadão comum.

E nas cidades, também, havia as mulheres e as crianças. Entendemos então porque as mulheres não estavam nas estradas caminhando: a existência das crianças prendiam-nas às cidades, faziam com que lá sobrevivessem, mesmo que em empregos menores ou degradantes, pois era mister que as crianças sobrevivessem.

Se um homem daqueles que se movimentava entre as cidades tivesse sorte, poderia ser aceito por uma daquelas mulheres e ir morar no seu quartinho ou outro abrigo precário, e então teria como banhar-se, cortar a barba, quem sabe conseguir roupas limpas, tornando-se de novo apto a procurar emprego, e sua sorte poderia mudar a partir de uma mulher. Eram muitas as maravilhas que uma cidade oferecia a quem não tinha nada, a quem era escorraçado por cachorros e pedradas da área rural. 

Há que se pensar, também, que tais relações e redes de relações que se criam nas cidades são próprias dessa população excluída – que mesmo quando um desvalido dorme sob a mais luxuosa das marquises, em pontos valorizados das cidades, não faz ele parte daquele lugar, mas pertence a um outro extrato social, a uma outra população que se “infiltra” nas diversas áreas das diversas classes, mas que pertence a um mundo periférico e que habita lugares de baixa qualidade e esconsos muitas vezes impensados. De qualquer forma, é a cidade o seu abrigo e o seu destino, é na cidade que ele consegue sobreviver.   
  

(CONTINUA)


Trabalho apresentado à Disciplina de Multiterritorilidade, modernidade-mundo e vínculos territoriais, ministrada pelo Prof. Dr. Álvaro Luiz Heidrich, do Programa de Pós-graduação em Geografia (Doutorado), da Universidade Federal do Paraná.


* Escritora de Blumenau/SC, historiadora e doutoranda em Geografia pela UFPR, autora de mais três dezenas de livros, entre os quais os romances “Verde Vale” (dez edições) e “No tempo das tangerinas” (12 edições).
                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                             


Um comentário: