O dia em que fugi de um cadeirante
* Por
José Ribamar Bessa Freire
Contar ou não contar?
Hesito. Sei que não é nada honroso tornar público o que aconteceu a mim e ao
meu amigo de fé, irmão, camarada, Roberto Luis, quando fomos atacados em plena
luz do dia, num parque em Niterói. Verás que um filho teu não foge à luta? Eu,
hein! Nem pensar! Fugimos em desabalada carreira, perseguidos de perto por um
furioso agressor completamente ensandecido. Pensamos com nossas pernas.
Os mais afoitos
argumentam que isso é motivo para se envergonhar. Mas há controvérsias. Afinal,
"apanhar do Governo não é desfeita" como ensinou Fabiano, personagem
de Vidas Secas, depois de levar surra de facão de um soldado. O próprio
escritor Graciliano Ramos apanhou muito nos cárceres da ditadura Vargas e
ostentou as feridas como medalha, não como desonra.
Acontece que no nosso
caso o agressor não era "o governo", mas um desgovernado cadeirante.
É. Isso mesmo! Um cadeirante com rodas no lugar das pernas. A humilhação reside
aí, nas condições desiguais que, em tese, nos eram amplamente favoráveis. Daria
para encará-lo. Éramos dois contra um e ainda assim nos pirulitamos, mas não
foi por escrúpulos de bater num deficiente. Demos às de vila-diogo por instinto
de conservação, digamos assim, ou se preferir, por medo mesmo.
Por isso, hesito em
contar, nem tanto em respeito a Roberto Luis, um poço de mansidão, que nada tem
de fanfarrão, mas por mim, que fico com a reputação arranhada ao admitir que
nos faltou o brio e a coragem do cadeirante que lhe conferiu superioridade
sobre nós. Portanto, se conto tudo, sem nada omitir, é porque confio na
indulgência do leitor. Foi assim.
Rota de fuga
No sábado de aleluia,
de manhã bem cedinho, saímos como de costume para nossa caminhada matinal no
arborizado Campo de São Bento, eu e Roberto Luis. Passarinhos cantando,
borboletas voando, pombinhos arrulhando, o sol nascendo, poucas pessoas
transitando, uma ou outra com o cachorro na coleira. Embora o cenário seja
idílico, todo cuidado é pouco, tem muita gente que foi assaltada aqui nessa
hora.
De repente, não mais
que de repente, eis que surge diante de nós um cadeirante, que depois soubemos
se chamar Benjamin. Seus olhos faiscantes cuspiam fogo, ele nos ameaçou e sem
mais nem menos avançou, trotando sobre rodas, numa velocidade inacreditável,
disposto a tudo.
- Corre, Bob Lucho! -
gritei ao ver a virulência do meliante.
Quando chamo Roberto
Luis de Bob Lucho - e ele sabe disso - é porque o bicho está pegando. E estava.
Saímos emparelhados com o cadeirante nos nossos calcanhares, parecia cão
raivoso. Na perseguição cinematográfica, enveredamos pela alameda principal,
seguimos a trilha do parque pelo meio da vegetação, invadimos canteiros de
plantas, contornamos as bordas do lago, com o agressor em nosso encalço. Gritamos
por socorro, na esperança de que o jardineiro ali presente fizesse algo, mas
ele, insensível, parecia se divertir com nossa desgraça.
Exagero se digo que o
embate tinha algo de épico, com cheiro de Guerra de Tróia no ar? É que
transfigurado em Aquiles, o herói grego "dos pés ligeiros", eu quase
voava, só que numa história invertida, pois o perseguidor era Heitor, o
troiano. O diabo é que o bafo deste Heitor no meu talão lembrava Aquiles, morto
com flechada no calcanhar, única parte vulnerável de seu corpo. Com a
respiração alterada, o coração palpitante, em frangalhos e exauridos, só não
fomos flechados, porque subimos celeremente as escadas do coreto, deixando o
cadeirante lá embaixo.
Duas vidas
Convém te apresentar
os dois personagens principais dessa história: Roberto Luis Freire - o Bob
Lucho e Benjamin Fonseca - o Benje. Ambos mudaram várias vezes de identidade.
Cada um, qual guerreiro tupinambá, acumulou diversos nomes em função das
batalhas travadas ao longo da existência.
Foi como
"Neco" que Roberto Luis entrou na minha vida. O bom Neco foi
abandonado ainda bebê no portão da PUC, onde a mãe nunca ingressou. Estava
assustado, marcado pelos traumas do enjeitamento, quando decidi adotá-lo.
"Patife", o nome que lhe dei como tributo ao finado
"Canalha", seu antecessor, não pegou. Ficou sendo "Bob" por
causa das enormes orelhas que lhe dão ar de bobalhão. Logo mudou para "Bob
Lucho" em homenagem a um amigo colombiano chamado Roberto Luis. Foi assim
que um apelido - caso raro - acabou dando origem a este nome pomposo.
A história de
"Benje" é ainda mais sofrida. Seu nome era "Chaulim",
quando vadiava pelo Morro do Cavalão. Foi adotado por um coletor de papelão que
puxava carroça pelas ruas de Niterói - um burro-sem-rabo - e agora tem barraca
de fruta no sopé do morro. Lá encontrou alimento, carinho e um teto - dormia
debaixo da carrocinha. Um dia, em julho de 2012, durante briga com um cachorro
em frente ao túnel, foi atropelado por um carro que quebrou-lhe as patas
traseiras.
Ferido, com fissura na
coluna, a vítima foi socorrida por Marluce Toscano que a tudo assistiu.
Internado num abrigo para cães abandonados de Roberta Mello, lá ficou três
meses, mas segundo o veterinário precisava de cuidados especiais e teria que
fazer acupuntura e fisioterapia, num tratamento caro, cujo custeio necessitava
da ajuda de outras madrinhas e padrinhos. Foi tecida, então, uma rede de
solidariedade na internet em busca de um lar transitório para o dito cujo que
ficara aleijado.
Fazia parte desta rede
a advogada Cláudia Fonseca, que começou comprando ração, fralda e remédio, mas
em fevereiro de 2013 resolveu adotá-lo, trazendo-o para o seu apartamento em
Icaraí. Vida nova, nome novo. "Chaulim", agora chamado de
"Benje", estava com anemia, carrapato, fazia coco e xixi no chão e
arrastava as duas patas e os quartos pela casa, sujando tudo. Um calvário!
Ben Hur
Para ele não se
arrastar, Cláudia encomendou um aparelho com rodas de uma empresa sediada em
Botucatu (SP) - a VetCar Aparelho de Fisioterapia Veterinária. Trata-se de dispositivo
personalizado com rodas, dinâmica e equilíbrio exclusivos, que requer avaliação
prévia, exames, medição das pernas, peso, altura, tudo ajustado
milimetricamente incluindo o comprimento das barras laterais para que Benje
pudesse fazer curvas com tranquilidade. Por isso, na corrida, ele deixa Rubinho
Barichello no chinelo.
Com este aparelho em
aço inox trefilado, encaixe de alumínio leve, suporte de polietileno macio e
rodas emborrachadas - criação da inteligência humana - Benje passeia no parque com
Cláudia, Jhonys Ribeiro ou Juciara Pinho, auxiliar de enfermagem, que faz com
ele exercícios diários de fisioterapia. Ela retira o carrinho e ele já ensaia
uns passos milagrosamente, depois de fazer acupuntura com Fernanda Calmont para
regular o sistema nervoso e urinário e para o tônus muscular. Benje goza de um
direito que todo brasileiro devia ter, da mesma forma que qualquer ser vivo.
O nosso cadeirante tem
sete anos segundo o veterinário Diogo que calculou a idade através de exame de
dentição. Sobreviveu porque o Brasil não é feito só de eduardos cunhas, renans
calheiros e cerverós.
O Ben-Hur dos
cachorros, sofrido, é gente finíssima. Apoiado pela ternura humana, é exemplo
de resistência e superação. Na realidade, o "ataque" que sofremos não
foi gratuito. Como todo cachorro de rua, ele territorializou todos os espaços e
quem pagou o pato foi Bob, o "invasor". Dizem, porém, as más línguas
- e eu aqui registro em tom de fofoca - que Benje e Bob disputam o coração de "Madona", uma
bela louraça Golden Retriever, inacessível ao bico dos dois que tentam
seduzi-la quando a encontram nos passeios matinais.
O ataque, portanto,
pode ter sido uma crise de ciúmes shakespeariana, digna de um Otelo. O ciúme é
uma merda, mas "cachorro também é um ser humano", como disse o
ex-ministro Antônio Magri em surto de sabedoria involuntária. Talvez tanto a
doçura do Bob quanto a valentia do Benje se espelhem numa humanidade que a
gente perde diariamente diante da barbárie cotidiana, como o assassinato do
menino no Complexo do Alemão, dos negros mortos por policiais nos Estados
Unidos e da constante invasão de terras indígenas.
Pronto. Contei.
Advirto que o que foi aqui relatado "é tudo verdade", como no
Festival de Cinema, embora, como diz Eduardo Coutinho, entre a história vivida
e a história relatada há sempre uma relativa distância.
*
Jornalista e historiador
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