Memória do holocausto
* Por
Marco Albertim
Ele sentou-se na
cadeira de uma das mesas para abrigar-se da chuva. A chuva ajudou-o a manter o
disfarce. Com pouco mais de um metro e meio de altura, ainda com os cabelos
fartos de fios pretos e grisalhos, é difícil para ele manter um disfarce. Já
tem 68 anos e o desleixo desproveu-o da arcada dentária superior.
Crescera obedecendo a
ordens; mesmo depois dos vinte e cinco anos, convencera-se de que cumprir com a
disciplina, inda que vazia de razões, seria o único meio de amadurecer a
cidadania. Morando sozinho, aposentado, tirando proveito do aluguel de meia
dúzia de apartamentos de sua propriedade, carece de companhia para conversar.
Mas sabe que a vizinhança não lhe dá ouvidos porque, com o palavreado inchado
de mentiras para compensar-se da pequenez do tamanho, ninguém acredita no que
diz.
Assim, Durval Pacheco
sentou-se queixando-se da chuva, numa das mesas desocupadas. O temporal
engrossou. Os pingos na coberta externa de alumínio do bar, zumbiam feito balas
ricocheteando. Ele não se amofinou; olhou para a rua e acreditou que também a
natureza se acumpliciara com seus propósitos. Levantou-se de onde estava e
sentou-se noutra cadeira, numa das mesas já ocupadas. A explicação seria curta.
O jorro abundante saiu-se como a alforria para juntar-se até a estranhos.
- Se depender de mim
você não pega uma gripe – disse o outro. Durval Pacheco, para ele, não era tão
estranho.
- Não me lembro de
quando peguei uma gripe. Já faz mais de quarenta anos.
É a primeira mentira –
pensou o outro. Durval Pacheco tinha informações de Maneco Simões; sabia-o,
embora com imprecisões, um comunista que fora perseguido por militares.
- A última vez que fui
forçado a ficar sob um temporal forte, foi quando fiquei de tocaia no mato.
- Em treinamento?
- Cumprindo ordem!
Maneco Simões quis
olhá-lo de cima a baixo. Mas a pouca estatura do homem permitiu somente
perscrutá-lo da cintura para cima. Fitou a testa vincada. Viu que o homem
queria dar conta de um sentimento pouco comum em seu juízo.
- Sim, cumprindo
ordem. Os camponeses vinham na direção do engenho. Vinham para ocupar o
engenho. Nós estávamos escondidos numa mata de eucaliptos, por trás dos
troncos. Antes que entrassem na porteira do engenho, veio a ordem de atirar.
- Sobrou algum?
- Não sei. Nós
atiramos e depois saímos na caminhonete que tinha ficado por trás do morro.
A chuva não deu
trégua. Logo, outro automóvel estacionou em frente ao bar. De dentro saiu o
colega de Durval Pacheco. Usando bermuda, camisa de algodão liso, só uma cor,
verde desbotado. Na cabeça, um chapéu de campanha usado pelo exército, com a
aba toda arriada. Sentou-se ao lado de Pacheco, tirou o chapéu da cabeça,
mostrando a calvície. O nariz aquilino, a testa alta, o rosto barbeado com
apuro, tudo no recém-chegado tinha o perfil de Mussolini.
Não cumprimentou,
posto que o certo, conforme ele, seria mostrar-se familiar, com desembaraço
para expor-se.
- Você não tem nada do
que se arrepender por ter metralhado camponeses. Viu o que aconteceu no dia 15,
na Avenida Paulista? Carlinhos Metralha falou no microfone e foi aplaudido. Na
frente de um milhão de pessoas.
Pacheco soubera dos
gritos pedindo a volta dos militares. Olhou para Maneco Simões, conhecendo suas
antipatias a fascistas. Riu contrafeito, entrevendo também um traço de
bonacheirice na paciência que seu rosto exibia.
Com o temporal
entrando na noite, a rua cobrira-se de lama, poças largas. Durval Pacheco quis
ir para casa. Mas a espessura vermelhosa da lama vizinha à margem da calçada,
remeteu-o ao lamaçal da estrada rumo à porteira do engenho. Lá, tivera a
certeza, os primeiros disparos de sua metralhadora abateram dois homens com
chapéu de palha na cabeça. Ele riu.
*Jornalista
e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de
Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi
ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção
Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A
convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de
Natal”. Tem três livros de contos e um romance.
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