Carnaval vermelho
* Por
Marco Albertim
O carnaval de Olinda
não sorve autocríticas; ao contrário, adensa-as, porque as ladeiras abocanham
as pernas para lembrar que o passeio tem um custo. Este custo é esquecido pelo
folião de classe média; não tarda, também ele prostra, preocupado apenas em se
ver livre da fadiga. Mas há um folião que se deixa absorver pelo frevo, pelo
sol e pela expectativa de que em breve deixará escorrer o próprio sêmen, como
num ato de recuperação da cidadania que lhe fora tomada.
Durante muitos anos Adolfo Branco privou-se do
carnaval para não se viciar na promiscuidade carnal da pequena-burguesia. Ele a
abominava, em que pese ter sido filho de um proprietário de engenho, inda que
arruinado pela usina de açúcar. Também porque, perseguido pela ditadura, não
quis se diluir na multidão porque a orquestra subindo e descendo as ladeiras,
tinha o custeio da prefeitura gerida por um interventor serviçal dos militares.
Agora a prefeitura tem
no mastro do frontispício a bandeira da cidade e de Pernambuco. Outra, ausente,
não tremula, mas pulsa invisível no coração também rubro de Adolfo Branco; de
Adolfo e de Emília Couto; e ainda no dos membros da administração
recém-empossada da prefeitura. Os dois usam camiseta vermelha e bermuda jeans
com as bocas esfiapadas acima dos joelhos.
Os dois, cansados,
sentam-se num dos bancos da praça em frente à prefeitura. Noutra época, seriam
percebidos sem esforço, visto ser um local aberto, nunca usado para
confabulações de casais. O sobradão está fechado, tem na frente alegorias
histriônicas, grotescas, com sorrisos forçados.
- Acho que devo alguma
autocrítica a Genaro - diz ele, tirando o suor do rosto com dois dedos; ao que
tudo indicava, perfilando-se para a autocrítica.
- Por quê? - Emília
olhou-o deixando os lábios finos soltos, mostrando os dentes cerrados, também
miúdos.
- Porque você foi
durante muitos anos a companheira dele.
- Não se trata disso a
essa altura. A opção foi minha. Genaro hoje é um trapo do revolucionário que
foi há dez anos.
- Talvez em respeito
ao passado dele.
- O passado dele, ele
mesmo cuspiu ao virar as costas para a bandeira do Partido.
Emília Couto saíra de
casa de modo tão incomum quanto os olhos perplexos de Genaro. A camiseta
vermelha, a bermuda jeans, os cabelos estranhamente soltos, incivis aos olhos
de Genaro.
- Aonde vai? - ele
quis saber.
- Você não tem mais o
direito de fazer essa pergunta.
- Vestida assim... O
que dirão os camaradas?
- Que camaradas? Você
não tem mais camaradas.
Ele abaixou os olhos
para não mostrar a vermelhidão de susto no juízo, nas entranhas que - nunca
julgara que fosse passar por tamanho transe - estripavam-se em revoluteio.
Emília Couto deixou-se
soprar pelo vento nas ruas do Guadalupe. A vizinhança, misturando pasmo e riso,
saudou-a sem perguntar por Genaro. Não caberia perguntas. O jeito solto de
Emília, sem olhar nos olhos de ninguém, sem dar trégua a inquirições, deu conta
de que ela resgatara o desembaraço perdido. Encontrou-se com Adolfo Branco no Largo
do Amparo. No balcão gorduroso da Bodega de Veio, tomou a primeira cerveja. Ela
com os olhos no fundo do copo, ele com um no copo e outro nas inquirições mudas
do dono da bodega.
Seguiram pela rua
Prudente de Morais, para virar à direita, no oitão da Igreja do Carmo. Sentados
na praça Monsenhor Fabrício, a conversa foi interrompida pelo bloco de frevos.
A orquestra estrondou sobretudo nos ouvidos de Adolfo Branco, lembrando-o de
quando se recusara a imiscuir-se com a ideologia pequeno-burguesa, nos tijolos
nus das ruas de Olinda. A Porta, nome do bloco, tinha uma jovem cuja roupa era
a calcinha do corpo. Pulando sobre a porta carregada nos ombros dos rapazes,
ela sacudia os seios duros, remoçados pelos gritos e pelo sopro generoso do
vento livre da lateral do sobradão da prefeitura.
O casal sorriu,
cúmplice com a nudez rebelde da moça.
Súbito, saiu da
multidão o corpo balofo de Genaro. Careca, os olhos injetados do agravo ao
amor-próprio. Apontou para o casal e sentenciou:
- Adolfo Branco,
vestido desse modo o senhor parece mais um bolchevique derrotado!
*Jornalista
e escritor. Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de
Recife. Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi
ganhador do concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção
Honrosa em concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A
convite, integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de
Natal”. Tem três livros de contos e um romance.
Nenhum comentário:
Postar um comentário