Rastreador
é aquele que segue os passos de outro
* Por
Mara Narciso
Eram mocinhas bobinhas
na janela do segundo andar do colégio, e chamavam umas às outras para me ver,
gritando para que eu as visse. A escola só tinha meninas, e, na idade em que
estas estavam, quinze anos, era de se esperar que agitassem, como se eu fosse
um astro de Hollywood. Mas eu era apenas um rapaz pobre, de dezenove anos,
começando a vida, servindo de faz tudo numa pequena fábrica de bebidas. Depois
elas passaram a me telefonar no trabalho, de forma anônima, falando que eu era
bonito. Isso me envaideceu, mas eu estava acostumado com isso, já que, desde
menino, as mulheres me elogiavam. Quando eu passava de bicicleta, me chamavam
de lindo e corriam para se esconder. Era uma brincadeira que me divertia.
Três estudantes
daquele colégio também brincavam comigo, e eu já sabia quem eram. Uma delas me
telefonou e disse ser a outra, a mais tímida, que raramente me telefonava, e
foi por esta que passei a me interessar. Ela mudou de escola e de casa, mas
continuava no meu caminho, pois a minha moradia era perto do seu novo colégio.
E a gente se olhava na rua, queria, mas não se falava. Então, começamos a
conversar pelo telefone. Ficamos gostando um do outro. Afastamo-nos, quando me
mudei para muito longe, um lugar frio, e me iniciei numa profissão nova e
promissora.
Tempos depois, eu quis
namorá-la, mas, por medo, ela desculpou-se e não aceitou. Mantivemos a amizade
com cartas e telefonemas frequentes. Mas eu me casei, e depois ela também se
casou. Soube disso quando a procurei, e por telefone, a mãe dela me disse a
verdade. Foi um susto para mim, ainda que também estivesse casado. Desde então,
passei a seguir seus passos, olhando pelo catálogo telefônico, observando onde
trabalhava, onde morava, decorando os números dos seus telefones. Morando
longe, porém, voltando para visitar a família, emocionava-me saber que ela
estava tão perto.
Progredi, fiz sucesso,
ganhei dinheiro, mas aquele amor de adolescente nunca me abandonou. Pensava
naquela mulher, e alguma coisa me machucava por dentro. Era uma frustração que
eu carregava, um amor não resolvido, algo não concretizado que me torturava.
Sem modéstia, sou bonito, e, na ocasião, com dinheiro, tive as mulheres que quis,
ainda que casado. Meu casamento não foi por amor, mas por necessidade. E lá no
fundo, com os sonhos concretizados, reencontrar aquela mulher e tê-la, era
preciso. Filhos criados, netos chegando, ansiando por emoção, eu a procurava
pela internet. Alguma coisa aparecia no Google, e eu sabia por alto o que lhe
acontecia. Viajava, trabalhava, era mãe.
Um dia, me enchi de
coragem e lhe escrevi um e-mail, mas o endereço estava desativado e minha
declaração de afeto voltou. De vez em quando, eu repetia o feito, e nada
acontecia. Soube do novo e-mail dela e lhe enviei uma mensagem falando de como
acompanhava a sua vida. De imediato, ela me respondeu, satisfeita com o meu
contato. Contei-lhe dos 34 anos de espera. Os nossos casamentos não estavam
bem, e pelo telefone nossas conversas nos despertaram. O sentimento do passado
voltou. Acabamos nossos casamentos e fomos viver uma aventura romântica, na
verdade, uma paixão explosiva.
Viagens, namoro à
distância, as dificuldades eram muitas, os gastos imensos, filhos com
problemas, muitos desafios. O amor em franca ascensão, teve seu ápice e a
esperada queda. Não estava valendo a pena tantos sacrifícios e decidi acabar.
Foi muito ruim, então retornei. Insisti naquilo por mais alguns meses, porém, a
viagem de navio que estava programada, caiu por terra, e em seguida desisti
daquela mulher, o amor da minha vida. Sumi nas férias, comecei outro
relacionamento, paralelo ao principal. Simplesmente deixei acabar no ar, virar
fumaça o que passei a vida toda procurando, e que nos fez muito felizes em seu
tempo. Anos se passaram, tive outros relacionamentos, mas não a esqueci. Embora
não a queira mais.
Mantive o meu hábito
antigo de observá-la, e, assim, vigiava o Orkut, no qual, no passado havia fotos
nossas, e ela excluiu a página, quando terminei. Mal voltou, eu lhe pedi
amizade. Era um perfil fake, sem foto e sem amigos, servindo apenas para
procurá-la. Ela não retornou. Virtualmente, já tinha lhe cumprimentado por
ocasião do seu aniversário, e outra vez no dia da sua profissão, também enviei
cartão de Natal, e nada. Continuava muda. No Orkut tinha o dedo duro, que
informava quem tinha visitado o perfil, mas no Facebook não tem. Desde que ela
chegou, passei a visitar a sua página com frequência, pois devido à origem,
temos amigos em comum. Quando ela percebeu e falava do fato indiretamente, eu
desaparecia, para de novo retornar, insaciável.
No dia do 5º
aniversário do fim, ela postou uma mensagem com direito a bolo de chocolate com
cinco velas, que muito me impressionou. Falou do desastre e do sofrimento
elevado a milésima potência, mas que não queria me ver nunca mais. Rastreá-la é
mais gostoso do que namorá-la. Sei dos meus motivos, e ainda que eu viva muitas
vidas, e ande pela Terra por mil anos, ainda assim manterei a vontade de
vigiá-la.
*Médica endocrinologista, jornalista
profissional, membro da Academia Feminina de Letras e do Instituto Histórico e
Geográfico, ambos de Montes Claros e autora do livro “Segurando a
Hiperatividade”
O ser humano e suas compulsões... esta sua ficção beira o masoquismo, de ambas as partes da relação. Mas quanto disso se vê - de verdade - por aí! Bom texto, Mara.
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