Korda
* Por
Urda Alice Klueger
Já me disseram que a
foto mais reproduzida no mundo é a do quadro da Mona Lisa, e aí fico a pensar
na decepção que tive quando vi o quadro de verdade, lá no Louvre. O Louvre é um
museu ENORME, daqueles que a gente precisa de mais de um dia para ver, cheio de
quadros ENORMES, separados da gente apenas por uma cordinha – e quando se chega
à Mona Lisa ela é um quadro pequenino em relação aos outros, e está lá no fundo
de um corredor comprido, e entre ela e a gente há uma porção de paredes de
vidro à prova de roubo ou ataque, que a protegem e deformam um bocado a magia
dela, e na frente da gente tem tal multidão de gente tentando ver aquele quadro
mais famoso do mundo que na verdade a gente vê muito pouco. Consolei-me, na
ocasião, comprando um cartão postal com a foto do quadro, para levar para o
hotel e olhar bem como é que era a bendita Mona Lisa. Leonardo da Vinci que me
perdoe por eu não ter curtido devidamente o seu quadro.
Acho, no entanto, que
a foto mais conhecida no século XXI é outra: é a de um jovem argentino que,
depois de formar-se em medicina, saiu a andar pela América, primeiro com uma
motoquinha, e depois com uma bicicleta, e acabou participando de uma revolução
que até hoje mexe com os brios de muita gente.
A foto em questão, de
Che Guevara, foi tirada em algum momento iluminado da vida dos dois: do
fotografado e do fotografante, e está nas camisetas, botons, adesivos, agendas,
e o que mais se possa imaginar de milhões de pessoas pelo mundo afora. Penso
que ela já bateu o número de cópias da Mona Lisa. De Che Guevara você já ouviu
falar, mas quem bateu aquela foto? É um assunto que muita gente também sabe:
foi um fotógrafo cubano chamado Korda, e penso que raríssimos de vocês teve na
vida a oportunidade que eu tive: a de conviver pessoalmente com o fotógrafo
Korda.
Korda e um grupo de
outros artistas cubanos apareceram em Blumenau lá pelo outono de 1994, e o
Artur Monteiro e eu fomos mais ou menos os anjos-da-guarda, ou algo assim, do
alegre grupo de cubanos que achava o nosso rum e a nossa pimenta muito fracos.
No grupo, entre desenhistas, fotógrafos e pintores, havia uma artista plástica
chamada Lésbia, que achava totalmente natural chamar-se Lésbia, sem a menor
malícia a respeito do seu nome, coisa tão comum a nossa gente brasileira.
Por uns dias, esteve
aqui todo o grupo; depois, os outros se foram e ficou Korda. Ah! Como lembro de
Korda! Ele me parecia sempre como um alegre Profeta do Antigo Testamento, e é
assim que a sua imagem ficou no meu coração e na minha mente. Artur Monteiro e
eu o carregamos para todas as partes, revezando-nos. Korda, naquela altura,
teria mais de sessenta anos, mas sua energia era ilimitada. Eu vivia cansada e
cheia de sono de tanto acompanhar Korda, mas não perderia um instante da sua
companhia por nada do mundo. Tenho uma linda foto com ele no Restaurante
Tiefensee, em Blumenau, onde ele se fartou de comer cierdo.
Por dois anos Korda
fora o fotógrafo oficial do governo cubano, logo após a Revolução. Disse-nos,
no entanto, que não tinha pique para tanto: Fidel Castro e Che Guevara dormiam
duas ou três horas e já estavam prontos para outra longa jornada de trabalho,
enquanto ele, Korda, precisava lá de suas oito horas de sono. Chegou um momento
em que não agüentou mais: teve que pedir a conta. Mas o quanto tinha para
contar daqueles amigos íntimos e pessoais que provocam reações tão desencontradas
na Humanidade de hoje: há os que os amam e há os que morrem de medo deles!
Por alguns dias, Korda
hospedou-se na minha casa. Tenho até hoje, na minha parede, uma foto tirada por
ele, revelada do negativo original, de dois jovens sem camisa pescando na
transparência do mar do Caribe: Fidel e Che. Ele escreveu uma dedicatória. E um
dia acabou indo-se embora, e Artur Monteiro e eu ficamos na rodoviária de
Blumenau, abanando para ele dentro do ônibus. Eu sofri um bocado, faz um ou
dois anos, quando soube que Korda morreu em Paris. Ele é daquelas pessoas que a
gente nunca esquece!.
Blumenau, 03 de
Fevereiro de 2004.
*
Escritora de Blumenau/SC, historiadora e doutoranda em Geografia pela UFPR,
autora de mais três dezenas de livros, entre os quais os romances “Verde Vale”
(dez edições) e “No tempo das tangerinas” (12 edições).
Um privilégio e tanto ter conhecido Korda.
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