O blogueiro e a
madrinha de bateria
* Por
Gustavo do Carmo
Chamou um táxi. Estava
nua. Não inteiramente, mas com o corpo pintado de dourado e um tapa-sexo. Vinha
do sambódromo. Arrasada por ter prejudicado o desfile da sua escola de samba.
Safrane Camargo desfilara como madrinha de bateria da Interesseiros da Cidade
de Deus, uma escola do segundo grupo.
Um primeiro táxi,
dirigido por um cinqüentão magro, com cara de tarado, parou. O motorista
perguntou quanto era o programa. Safrane ignorou e o taxista foi embora
xingando. Veio o segundo. Era um senhor de uns sessenta anos, cabelos brancos e
barrigudo. Assustado e surpreso, mesmo gostando de mulher, ainda mais nua na
sua frente, ele ficou receoso em parar. Mas parou.
Seu Jandir não era
preconceituoso, mas também chegou a achar que Safrane era uma prostituta ou um
travesti oferecendo programa. Pensou em dizer não e seguir caminho. Também
ficou com medo de vir um assaltante junto com ela. Mas lembrou que era
carnaval. E ele não podia recusar viagem, apesar daquela moça parecer estar completamente
sem dinheiro. Ficou na sua. Aceitou a passageira. Certificou-se de que era uma
mulher. Percebeu que ela estava triste.
— Me leva pro Aterro
do Flamengo?
— Levo sim. Mas me
desculpe, minha filha, antes de você se sentar, poderia forrar o banco com esse
jornal?
— Claro. Murmurou. E
Safrane atendeu ao pedido do motorista que lhe dava algumas folhas de jornal.
Chorava no banco de
trás, pensando nas palavras preconceituosas vindas da voz grave do mestre de
bateria da escola, um negro gordo de raros cabelos grisalhos:
— SUA BRANQUELA
VAGABUNDA! VOCÊ NÃO É DA COMUNIDADE, MUITO MENOS DO NOSSO ESTADO! SÓ DESFILOU
NA NOSSA ESCOLA PARA MOSTRAR A SUA BOLA DE SILICONE E NOS PREJUDICAR. VAMOS
PERDER PONTOS NA EVOLUÇÃO E POR ATRASO POR SUA CULPA! PODEMOS SER REBAIXADOS
POR SUA CULPA!
De fato, Safrane não pertencia
à comunidade. Era paulista. Mas seus seios e bunda não eram siliconados. Todos
naturais. Fora essa injustiça, a moça dava razão ao Mestre Gordo, como o
estúpido era chamado na comunidade à qual não pertencia.
Ela ainda tentou se
consolar com o namorado num dos camarotes. Mas o flagrou, na dispersão mesmo,
agarrado a uma passista mulata. Esta traição a abalou menos do que as palavras
humilhantes do mestre de bateria, do presidente, do bicheiro patrono da escola,
do diretor de harmonia, porta-bandeira, mestre-sala, entre outros, que
repetiram as críticas no caminho.
Saiu da área da
dispersão para a rua Frei Caneca. Caminhava para a rua do Catumbi enquanto se
“despia” do esplendor e do sapato de salto. As lágrimas já borravam a sua
maquiagem e o suor derretia a tinta dourada dos seus seios, revelando as
auréolas largas e rosadas.
Pelo retrovisor,
Jandir observava a passageira. Não com olhar de desejo ou tara. Mas de pena.
—A senhora está
sentindo alguma coisa? Perguntou.
— Não, nada. Disfarçou
a tristeza.
— Olha, a moça me
desculpa a indiscrição, mas como é que você vai me pagar? Estou vendo que você
está completamente sem dinheiro.
— Me empresta um papel
e caneta, por favor?
O velho taxista tirou
uma folha de papel de um bloquinho de anotações pendurado no para-brisa e,
junto com uma caneta, direcionou a mão direita para trás. Menos de um minuto
depois recebeu tudo de volta, com o papel rabiscado:
SAFRANE
NUNES CAMARGO
SUÍTE
602
HOTEL
COPA MAR
RUA
SANTA CLARA, 116 - COPACABANA
— Pede pro recepcionista colocar a sua corrida
na conta do hotel que eu pago quando for embora.
— Mas esse hotel é em
Copacabana. Tem certeza de que você quer descer agora no Aterro do Flamengo? Eu te deixo no hotel e volto amanhã pra
receber a corrida. Vai descansar. Não pode ficar andando a essa hora na cidade
sem roupas.
— Por favor, meu
senhor! Eu tive um dia péssimo hoje. Quero espairecer a minha cabeça. Insistiu
Safrane, impaciente.
— Está bem! Não está
mais aqui quem falou. Vou fazer o que a moça está pedindo. Então chegamos.
O carro parou e
Safrane saltou pela porta de trás do táxi dizendo apenas um “obrigada” ao
motorista. Jandir já tinha sumido com o seu carro quando a paulista caminhou,
já totalmente nua (a pintura já estava praticamente derretida) para uma
passarela na via expressa da Avenida Infante Dom Henrique.
Ela já estava na
passarela elevada, pronta para se jogar no grande fluxo de veículos, apesar do
horário e do feriado. Olhou para os lados para certificar-se de que não havia
nenhum policial por perto. Desistiu. Em vez do guarda, tinha outro potencial
suicida. Um homem gordo, aparentando vinte e cinco anos, cabelos pretos, barba
irregular de mesma cor e óculos de lentes grossas.
Com o seu forte
sotaque paulista, Safrane comentou contrariada.
— Aff! Estou vendo que
eu não serei a única suicida por aqui.
— Eu acho que eu já
morri e estou sendo recebido no céu por um anjo com a cara da modelo Safrane
Camargo!
— Não morreu, não.
Você ainda está vivo e quem está aqui é a própria. Respondeu, com tom irônico,
apesar de estar falando a verdade. — Está querendo se matar por quê?
— Meu pai ameaçou me
deserdar se eu não fizer um concurso público ou procurar um emprego.
— Desculpa a
franqueza, mas por que você não atende o seu pai, então?
— Porque eu quero
trabalhar de verdade e não passar a minha vida inteira fazendo trabalho
burocrático. Eu estudei quatro anos para ser jornalista e não funcionário
público. Procuro emprego todos os dias pela internet e não tenho resposta. Já
os meus ex-colegas de faculdade, que não me procuram mais, conseguem o deles
tudo por QI, o Quem Indica. Você mesma deve namorar alguém importante. Tenho
horror a burocracia.
— Não sou indicada de
ninguém. Eu tive que pagar pra desfilar. Mas, deixa pra lá. Qual o seu nome? Você
faz o que na internet?
— Eu me chamo Carlos
Eduardo Carvalho. Tenho um blog onde eu posto notícias culturais e os meus
contos. Só consigo dinheiro uma vez por ano pela publicidade do sistema de
busca. Já lancei dois livros, que não me deram muito retorno. Mas o meu pai não
entende que o lucro demora e fica me cobrando pra eu trazer dinheiro. Sinto que
eu só dou prejuízo para os meus pais. Tenho que economizar em tudo, mas ele
mesmo não economiza. E ainda tá me obrigando a emagrecer. Por isso não aguento
mais. Eu quero morrer.
— Olha, infelizmente,
você deveria depender menos da internet e sair mais de casa. E emagrecer
também. Mas entendo os seus objetivos.
Não quero bancar a psicóloga, até porque eu também vim para me matar.
Prejudiquei a minha escola de samba no desfile e ela pode ser rebaixada. Parece
que vim de São Paulo só pra isso! Fui humilhada pela escola toda. Nunca mais
vou desfilar aqui no Rio de Janeiro.
— Eu acho que você deveria
se exibir menos e se comprometer mais com a escola. Olha aí, você já está
inteiramente nua na minha frente. A tinta do seu corpo já se derreteu toda.
— Não entendo vocês
homens! Se a gente desfila vestida se desinteressa. Se desfilamos nuas somos exibidas!
Aposto que você ia se masturbar no banheiro se me visse desfilar. Ironizou. — Então
vamos nos matar juntos.
O blogueiro e a
madrinha de bateria subiram novamente no gradil da passarela. De mãos dadas.
Desceram. Se abraçaram e se beijaram. Rapidamente, Carlos tirou a sua camisa
GG, que deu para Safrane vestir.
Foram juntos para o
hotel onde ela estava. De ônibus. A passagem foi paga por ele. Safrane suportou
serenamente os assobios e cantadas dos homens e os chamados de Vagabunda vindos
das mulheres. Tomaram banho juntos assim que chegaram ao hotel. Fizeram amor.
No carnaval seguinte,
Safrane Camargo se consagrava como rainha de bateria da Influentes da Mooca no
sambódromo de São Paulo. Exibia orgulhosamente os seios, ainda maiores por
causa da gravidez de sete meses. De um empresário paulista. O filho de Carlos
Eduardo ela perdeu aos três meses de gestação.
Carlos Eduardo
continuava com o seu blog e ainda era cobrado pelo seu pai. Discutiram novamente
no sábado de carnaval. Mais uma vez saiu desesperado para tentar se matar.
Nunca mais foi procurado por Safrane. Não era mais virgem. Nenhuma madrinha de
bateria frustrada e suicida apareceu para lhe fazer companhia.
*
Jornalista e publicitário de formação e escritor de coração. Publicou o romance
“Notícias que Marcam” pela Giz Editorial (de São Paulo-SP) e a coletânea
“Indecisos - Entre outros contos”.
Seu blog, “Tudo cultural” - www.tudocultural.blogspot.com é bastante freqüentado por leitores
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