Marina: Dragão Verde e avó do mundo
* Por
José Ribamar Bessa Freire
Ilmo. Sr. Prof. Dr.
Rogério de Cerqueira Leite
Saudações
Inspirado no bolero de
Waldick Soriano, escrevo esta carta, mas não repare os senões, para dizer o que
sinto sobre o artigo de sua autoria Desvendando Marina (FSP 31/08), no qual
declara: "Não me sinto confortável em ter como presidente uma pessoa que
acredita concretamente que o Universo foi criado em sete dias há apenas 4.000
anos aproximadamente". Para lhe dar algum conforto, mostro que não é bem
assim e assinalo três imprecisões no seu discurso.
A primeira está na
contagem do tempo. Nota-se que de física V.S. entende muito, por isso ocupa
merecidamente um lugar no Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia. Mas de
criacionismo, necas de pitibiribas. Quem leu os Anais do Antigo Testamento do
anglicano James Ussher sabe muito bem que o mundo, criado num domingo à tarde,
no dia 23 de outubro de 4.004 a.C, às 14h30, completa 6.018 anos entre um turno
e outro das eleições. Tem, portanto, mais de 2.000 anos do que foi calculado
por V.S.
A segunda imprecisão:
sua crítica ao criacionismo tem como referência uma versão única prestigiada
pela escrita, que parte do pressuposto de um Deus masculino como criador do
universo. Isso é uma construção judaico-cristã que não pode ser generalizada
para todas as culturas, especialmente para as da oralidade. Foi criada por
machões incongruentes. Sem útero, como pode Deus parir gente? Para os Tukano -
não o PSDB, mas o povo do Rio Negro (AM)
- quem criou o universo foi a avó do mundo, a Yepá-Bahuári-Mahsô. Quer
saber como foi?
Filho da música
Foi assim. No
princípio, o mundo não existia, só havia escuridão e o espaço vazio e triste, o
espaço frio e sem ideias, como no horário eleitoral. Eis que surge a Ye´pá,
dentro de uma nuvem branca, de brilho intenso, dançando, embalada por cantos
sagrados. A música, em forma de redemoinho de vento, abraça, beija e acaricia o
corpo da avó do mundo, penetra sua carne, seus ossos e até seus pensamentos e a
engravida, fazendo aumentar a temperatura ambiente.
Esse ato amoroso
intenso, realizado num clima extremamente quente, provoca uma enorme explosão
com um grande estrondo, gerando raios que formam um círculo rosado da cor de
jenipapo, todo iluminado. No meio da luz aparece sentada num banco uma mulher
grávida de música. É a Avó do Mundo que cria a Casa da Terra, parindo os
primeiros seres como narra Gabriel Gentil em Mito Tukano: Histórias proibidas
do Começo do Mundo. Ou seja, somos todos filhos da música que fecundou a Avó do
Mundo, incluindo aqui - incrível! - os físicos, os matemáticos e todos os
representantes do núcleo duro da ciência, mesmo os que ignoram o fato.
A terceira imprecisão é
a sua visão fundamentalista sobre ciência. Não me sinto confortável com o
inventário que V.S. faz de "todo o patrimônio intelectual que a humanidade
acumulou durante séculos", limitando-o exclusivamente ao campo da ciência.
Deste patrimônio, onde só cabe a "montanha de dados cientificamente
incontornáveis", V.S elimina a literatura, a música, a poesia, o mito e a
religião, além de outras instituições igualmente respeitáveis como a fofoca e a
jogada-de-conversa-fora.
Este discurso
excludente de uma arrogância incomensurável assusta, porque vê a ciência - mais
grave ainda uma forma de fazer ciência - como o ÚNICO procedimento válido para
a obtenção de conhecimentos, que seriam eternos, definitivos, o que evidencia
incapacidade de ler outras linguagens simbólicas.
V.S. incursiona no
campo médico para diagnosticar "uma desordem do desenvolvimento
neural" de Marina, criada pela "perversão intelectual do
fundamentalismo cristão". E conclui de forma contundente, esperando
convencer os leitores da Folha de SP, de
cujo conselho editorial V.S. faz parte:
- "Essa é a razão
por que espero que Marina não ganhe esta eleição".
O mito
Será que o pensamento
racional, o método e as técnicas científicas suplantaram mesmo o mito e a
religião? - pergunta Lévi-Strauss, que vê, sem ironias, a grandeza do Ocidente
no pensamento científico, mas chama a atenção para a função do mito na
contemporaneidade e mostra como a própria ciência produz mitos para explicar
aos não-cientistas verdades inacessíveis ao leigo - big-bang, universo em
expansão, etc. Depois de estudar mitos indígenas, ele concluiu em História de
Lince que "de modo mais inesperado, é o diálogo com a ciência que torna o
pensamento mítico novamente atual".
O mistério do Big Bang está dentro do mito tukano. Precisa apenas saber
lê-lo.
Quem concorda com esse
olhar é um matemático e físico da Universidade da Califórnia, Brian Swimme,
autor de vários livros sobre o tema, entre os quais The Universe Story e The
Universe is a Green Dragon. Este seu colega escreveu que hoje os cientistas
começam a perceber as limitações do texto científico para dar conta do universo
e que a linguagem que consegue melhor expressar sua grandiosidade é a linguagem
poética, metafórica, que afirma que o universo é um dragão verde.
V.S. conhece muito bem
a história social da ciência que nos mostra como o conhecimento científico é
resultado de uma acumulação de erros. O que é verdade hoje, amanhã pode não
ser. Lembro que dois grandes cientistas do séc. XIX, o botânico Martius e o
zoólogo Spix, que viajaram em 1819-1820 pelo rio Amazonas, consideraram
"fantasioso" o mito Tikuna de origem da vida, que fala de um único
ser saído da água e do qual descendem os demais. A ciência da época - foi antes
de Darwin e sua teoria da evolução -
achava que o homem tinha aparecido no planeta acabado, já pronto.
Hoje, o biólogos
ensinam nas universidades que toda a vida existente na terra descende de um
único ancestral, de um organismo unicelular que deu origem a todas as espécies
vivas, visão mais próxima do mito Tikuna do que da ciência de Martius e Spix.
Além do caráter provisório da ciência, o fato mostra que em nossos países
"se vê cada vez mais claro que a compreensão do mundo é muito mais ampla
que a compreensão ocidental do mundo" - como quer Boaventura de Souza Santos,
que considera a negação de outros modos de produzir conhecimento como
"epistemicídio".
Rogério epistemicida
Considerada incapaz por
V.S. para presidir o Brasil, além do mais Marina está sendo acusada de
fundamentalista, homofóbica, cúmplice do capital financeiro e até mesmo
protetora de torturadores. O título da matéria na FSP afirma: "EM NOVO
RECUO, MARINA AGORA DEFENDE ANISTIA A TORTURADORES DA DITADURA". Quando li
seu conteúdo, constatei que não era bem aquilo. Os jornalistas pediram, no
final da entrevista, que ela dissesse apenas "sim" ou "não"
para perguntas no formato "pinga fogo". Revisão da Lei da Anistia? -
indagaram. Ela respondeu "não", como Dilma e Aécio. Só isso.
Desconfio de tudo
aquilo que a mídia anuncia que Marina disse, fez ou fará. Só aceito aquilo que
eu puder ouvir e se puder identificar o contexto que lhe dá significado. Não
adianta Marina esclarecer que separa fé e religião, na hora de editar eles dão
outra interpretação. O Jornal da Globo insistiu várias vezes para saber se ela
consultava a Bíblia antes de tomar suas decisões. Além da falta de respeito,
William Waack perdeu uma oportunidade de nos apresentar e criticar o programa
de governo da candidata. Preferiu folclorizar.
Prezado prof.
Rogério,não tenho medo de votar em Marina pelas razões que V.S. alega, se fosse
assim não teria votado no Lula todas as vezes em que ele se candidatou.
Sinceramente, estou vagando e andando se Marina acredita que Deus criou o
mundo, se Dilma reza para Nossa Senhora Aparecida e vai ao Templo de Salomão,
se o pastor Everaldo, escondido, recebe mensagens da pomba gira, se o FHC é
ateu ou se na hora de fazer sua primeira comunhão, Rogério Leite acreditava que
Deus estava presente na hóstia consagrada, até porque a gente muda como mostram
suas propostas em relação ao pré-sal e ao pró-álcool.
O que me interessa é
saber o que os candidatos pretendem fazer com o Brasil e, mais especificamente,
com as terras e as culturas indígenas - um tópico que não foi ainda abordado
por nenhum deles e que é extremamente importante porque as sociedades indígenas
constituem um indicador extremamente sensível da natureza da sociedade que com
elas interage. No meu entender, é na política indigenista que cada candidato
vai mostrar sua cara.
Este locutor que vos
fala, que é um analógico confesso por limitações genéticas/epistemológicas,
espera de lideranças intelectuais, especialmente nos núcleos duros da ciência,
um comportamento mais rizomático em relação aos saberes outros. Não seja um
epistemicida ingrato, Rogério, agradeça ao povo Tukano o fato de ser filho da
música.
Atenciosamente,
Taquiprati, filho da
musica e da avó do mundo.
P.S. - Ele amava
cinema, literatura, arte culinária. Quando cozinhava, colocava poesia na
panela. Foi padre redentorista, funcionário do Instituto Nacional de Pesquisas
da Amazônia (INPA) e professor de Introdução à Literatura Inglesa na
Universidade Federal do Amazonas (UFAM). George Tokuwo Nakamura (1929-2014),
casado com Regina Nakamura, deixou cinco filhos: Daniel, Eduardo, Midori,
Esther e Cláudia e três netas. Nesta sexta, disse adeus. Foi sepultado no
sábado em Manaus.
*
Jornalista e historiador
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