segunda-feira, 22 de setembro de 2014

Lembranças

* Por Alexandre Vicente

Sob a mesa da televisão de 40 polegadas, repousa uma velha caixa de sapatos. Compondo o restante do cenário, uma máquina de costuras Singer, um jogo de sofás e paredes desbotados. Na estante, um relógio de cordas (presente de casamento) que toca uma suave melodia nas horas cheias e um aviso a cada meia. Seus martelos pressionam os metais que emitem os sons que pontuaram, como um metrônomo, o ciclo de vida daquela união.  Ao lado, objetos de decoração obsoletos que, igualmente contam a história dos 54 anos desde o enlace na igreja. Porta-retratos com fotografias dos filhos, noras, genros, netos e bisneto. Etapas de vidas distintas de cada um dos personagens que enxertaram a casa de alegria, correria, angústias, esperanças e propósitos.

Mas na velha caixa de sapatos, aquela que está sob a TV, é que estão guardados outros tesouros. Lembranças de outras vidas que transitaram em algum momento pelo cotidiano do casal. Observo os olhos, roupas, penteados datados e permanentemente impressos em papel especial coloridos ou preto e branco. A vida segue um rumo desconhecido. Uns partiram cedo. Outros simplesmente desapareceram aos poucos. Deixaram de frequentar, tornaram-se amigos distantes até a total ausência. Pergunto quem é esta? Essa… Como era o nome dela, filho…? A memória pede auxílio ao companheiro de jornada. Essa era a filha de fulano. O nome não lembro… Sei que ela casou e foi morar em São Paulo. Soube que morreu uns anos depois. Lamento o destino. Um rosto da jovem que já não divide as lembranças com ninguém. Cumpriu sua missão.

Encontro fotografias minhas, mas surpreendo-me ao ser revelado que aquele é meu irmão. Como a senhora sabe? Ué? E eu não sou a mãe? A mãe conhece os filhos. Um sorriso brota do rosto marcado. Eu devolvo na mesma moeda. Então não tem fotos minhas? Tem… Cadê, filho? Não sei, Eliza. Delci é quem pega as fotografias. Essa é minha irmã. Na foto e na ladinagem fotográfica. No fundo, ela tenta preservar a memória. Está em melhores mãos com ela. De mão enfaixada e o indicador apontando pro céu. Registro do acidente que a tornou canhota. Uma garrafa de leite caiu e ela tentou aparar sem sucesso. Teve o tendão cortado. Adaptou-se e prosseguiu.

Esse é o Carlos. Como tinha sardas. Pegava muito sol. – disse minha mãe.- Menino levado. Vivia com os dedos cortados de cerol. Rimos os três. Nossa! Os dentes da Dena eram bem prá fora… Chupou muito dedo. – adverte – Ela sabe de todos os motivos. Cada marca. Cada mudança de rumo. Mas ela usou aparelho e ficou perfeito. Usou? Pergunta assustada. Usou, mãe. Não lembra? Não. Usou, filho? Então não usou, Eliza. Sabia não. A memória em degeneração que guarda o passado, perde alguns fatos mais recentes.

As fotografias voltaram para a caixa e esta para baixo da TV. Um beijo. Semana que vem venho tomar café com vocês. Tá? Tá bom meu filho. Vai trabalhar? Hoje não. Estou de folga. Ahhh. Tá bom. Vai com Deus. Deus te abençoe. Obrigado, mãe. Fique com ele.


* Escritor carioca

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