sábado, 20 de setembro de 2014

Diário de viagem ao Maranhão – II

* Por Risomar Fasanaro


Ainda é nosso primeiro dia em São Luís. Naquele domingo à tarde, depois que a chuva parou, continuamos a percorrer a cidade junto com Rai, nossa guia. Ao ver que muitas construções históricas estão sendo restauradas pelo IPHAN, desisto da comissão que pretendíamos formar para falar com o secretário de Cultura de que tratei na primeira crônica.

Sei que projetos desta natureza exigem tempo e cuidado. Não se trata de uma simples reforma, mas sim de restauração. E trazer para o presente o que esses casarões eram no passado, exige todo um trabalho de pesquisa, além de empresas que patrocinem uma empreitada dessa.

Isso não evita constatar o longo período de abandono a que a cidade ficou entregue e não posso precisar qual ou quais as administrações responsáveis por esse descaso.                                                                         

A guia nos conta que São Luís recebeu o título de capital da Cultura 2009, concorrendo com as cidades de Areia, na Paraíba, Mariana, em Minas, Montenegro, no Rio Grande do Sul e Senador Pompeu, no Ceará. Título mais do que merecido pelos artistas e outros produtores culturais que aqui vivem e realizam seus trabalhos, tanto nos ateliês como nas ruas. Talvez por este motivo, ou por se tratar de um ano eleitoral, se procure acelerar as obras de restauro. Providência que, todos sabemos, é comum nas administrações que não dão prioridade à Cultura.

Continuamos nossa caminhada com Rai. É uma pena que os principais locais históricos estejam fechados. Passamos em frente ao Palácio dos Leões, onde fica o governo do Estado, e que se abre à visitação pública segundas, quartas e sextas-feiras. No dia seguinte fomos visitá-lo.

Logo depois, Rai nos mostra a casa onde viveu a mulher mais poderosa do Maranhão: Ana Jansen; e contou um pouco da vida daquela mulher que era descendente de nobres europeus, mas embora tenha nascido rica, perdeu tudo e enfrentou uma juventude muito pobre. Foi mãe solteira, e com muitas dificuldades manteve a mãe e o filho pequeno.

Sua situação financeira melhorou quando se tornou amante de Izidoro Rodrigues Pereira, o homem mais rico da província. Não é difícil imaginar o preconceito que aquela mulher enfrentou, vivendo no meio de uma sociedade machista e preconceituosa como deveria ser a daquela época não só no Maranhão, mas em todo o país. Assim sendo, Ana Jansen  passa a ser o objeto preferido da maledicência dos moralistas e fofoqueiros da época.  Donana, como era chamada, torna-se uma mulher revoltada e perversa que maltrata e tortura seus escravos. Ela era difamada principalmente por sua maior inimiga: dona Rosalina Ribeiro.

Izidoro era casado, mas era ela que o acompanhava em todas as reuniões e atos políticos. E foi participando desse mundo do poder, que ela aprendeu a conviver com as artimanhas da política. Com a morte da mulher, Izidoro assumiu oficialmente a relação com a Donana. Os dois tiveram seis filhos, e após quinze anos de relacionamento, ele morreu.

Viúva, Ana aumentou a fortuna da família, tornou-se rica, independente e poderosa. Era ela a principal liderança política da cidade. Além de difamada pelas mulheres maranhenses, que  não se conformavam com a existência de alguém tão livre, independente, perversa, principalmente com seus escravos, Donana era odiada também por seus inimigos políticos, principalmente pelo comendador Meireles, líder do partido conservador. Sua fama chegou ao palácio de D. Pedro II que quis conhecê-la; e a partir daí o povo passou a chamá-la de “Rainha do Maranhão”.

Contam os historiadores um episódio interessante sobre ela: seu grande inimigo Antônio Meireles, para vingar-se de Donana mandou fabricar na Inglaterra centenas de penicos com o rosto dela no fundo. Rapidamente os penicos foram todos vendidos. O que o Antônio Meireles não sabia é que aquele sucesso de vendas se devia à própria Donana que mandara comprá-los e colocá-los para uso dos escravos.

Um certo dia, Ana Jansen mandou que os escravos levassem todos os penicos à loja de Antônio Meireles, e jogassem todo o conteúdo que neles haviam juntado no chão e  nas paredes da loja do inimigo. Dessa forma, o comerciante ficou impedido de receber seus clientes, porque nada conseguia limpar o mau-cheiro que ficou na loja.

Uma lenda conta que nas noites de sexta-feira, Donana passeia pela cidade, com um vestido decotado com colares de diamantes lhe enfeitando o colo, em uma carruagem conduzida por um esqueleto, e levada por cavalos brancos cujas cabeças são chamas de fogo. Arrastar de correntes e gemidos dos escravos que ela torturou acompanham essa carruagem, e quem com ela encontrar receberá de Donana uma vela e por sua alma deverá rezar. Caso contrário, pela manhã em vez de vela encontrará um osso descarnado.

Nesta semana de 22 a 29 de agosto a cidade intensificou mais ainda suas atividades culturais com a Semana do Folclore. E nos chamou a atenção o grande público que cada atividade atrai. Funcionários da Secretaria de Cultura, todos uniformizados, recebem o público.

A abertura aconteceu no dia 22 com o Cine Popular com a apresentação dos filmes que concorreram à edição do Refestança deste ano e de 2007. Após a exibição do filme houve o lançamento do livro Poesias Reunidas de Valdelino Cécio, na praça que naquela noite foi batizada com o nome do Poeta e, em seguida uma roda de Choro, com quatro grupos: Pixinguinha, Tira-Teima, Urubu Malandro e Choro Pungado. Irmã de um bandolinista fui criada ouvindo choro, e me sinto incapaz de dizer qual daqueles grupos é o  mais talentoso.

Durante a semana houve a apresentação do Projeto de Reconhecimento do Bumba-meu–Boi como Patrimônio Imaterial Nacional, o plano  de Salvaguarda do Tambor de Crioula, e  a Roda de conversa ”Divino Maranhão” coordenada pela antropóloga Cláudia Gouveia que falou sobre sua experiência com a celebração da Festa do Divino no calendário religioso maranhense, além da exposição “Do Barro às vivências: cultura material e paisagem cultural dos quilombos de Alcântara”, promovida pelo Iphan.

Essa mostra foi o resultado de quatro meses de pesquisa de campo e entrevistas que se  realizaram em centenas de povoados remanescentes de quilombos de Alcântara.

A pesquisa visa relacionar o universo quilombola alcantarense com o matiz indígena que envolve o município. Utensílios domésticos, instrumentos de trabalho e objetos decorativos ficaram expostos à visitação pública. O encerramento da Semana se deu com uma apresentação de grupos de Tambor de Crioula, mas segundo os maranhenses.

No segundo dia de nossa estada fizemos amizade com três moças: Fátima, Dora e Cirlene. Todas de São Paulo. Agora somos cinco a percorrer as ruas. Às vezes nos perdemos das outras três, porque Edilena e eu entramos em todos os ateliês, conversamos com os artistas, fazemos mil perguntas, faço anotações, tiro fotos. Com isso as outras três nos perdem de vista.

Fico feliz ao ver mais casarões restaurados no centro histórico e que outros começam a ser.  Esta cidade constitui um verdadeiro tesouro. Bastaria nos deter na riqueza dos seus azulejos, e já teríamos aí motivo para uma pesquisa profunda dos seus motivos, dos seus símbolos, da sua beleza. Mas não é só isso.

São Luís é muito mais: é a beleza das suas altas portas e janelas guarnecidas por pedras de cantaria que, dizem uns, assim se chamam porque ao serem lapidadas produziam um som, que parecia uma cantaria. Outros dizem que aquele som seria o produzido pelos carros de bois que as transportavam dos portos até os locais das construções. A mim, as duas versões satisfazem. O importante é a música, é o sentimento que me toma ao deslizar as mãos por elas e sentir suas texturas, ver as ranhuras que abrigam o pó que de tanto tempo já se entranhou nas frestas, e hoje forma o claro escuro que nos encanta. Pedras que calçam as ruas por onde tantos passaram, uns alegres, saltitantes, outros tristes, acabrunhados...Penso em tanta coisa, em tantas pessoas que gostaria de ter ali comigo, para dividir a felicidade que sinto naquela cidade. A beleza daquele lugar...

Estávamos com uma programação para ir a Alcântara no sábado pela manhã. Passeio imperdível. Fiquei toda eufórica com a proposta, e fui das primeiras a me inscrever. Ao ouvir o guia dizer que iríamos de catamarã, quis saber do que se tratava, pois a ignorante aqui que vos escreve, jamais ouvira falar naquela embarcação. Quando soube, desisti do passeio. Fiquei amedrontada, por isso em cada táxi que tomávamos eu perguntava ao motorista se já viajara no tal catamarã. Quando eles diziam que não, eu perguntava por quê. Se eles tinham medo, se era perigoso. Fiz esse tipo de pesquisa com mais de quinze pessoas na cidade, até que um dia, diante da gozação de minhas companheiras de viagem, um motorista disse: “vou lhe levar pra ver um catamarã”. E gentilmente nos levou para ver a tal embarcação. Sosseguei e confirmei minha ida. Em outra crônica vou contar o que foi isso. Ou seja,  uma das maiores aventuras de minha vida. Aguardem! 

* Jornalista, professora de Literatura Brasileira e Portuguesa e escritora,  autora de “Eu: primeira pessoa, singular”, obra vencedora do Prêmio Teresa Martin de Literatura em júri composto por Ignácio de Loyola Brandão, Deonísio da Silva e José Louzeiro. Militante contra a última ditadura militar no Brasil.







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