Diário de viagem ao Maranhão –
II
* Por Risomar Fasanaro
Ainda é nosso primeiro dia em São Luís. Naquele
domingo à tarde, depois que a chuva parou, continuamos a percorrer a cidade
junto com Rai, nossa guia. Ao ver que muitas construções históricas estão sendo
restauradas pelo IPHAN, desisto da comissão que pretendíamos formar para falar
com o secretário de Cultura de que tratei na primeira crônica.
Sei que projetos desta natureza
exigem tempo e cuidado. Não se trata de uma simples reforma, mas sim de restauração.
E trazer para o presente o que esses casarões eram no passado, exige todo um
trabalho de pesquisa, além de empresas que patrocinem uma empreitada dessa.
Isso não evita constatar o longo
período de abandono a que a cidade ficou entregue e não posso precisar qual ou
quais as administrações responsáveis por esse descaso.
A guia nos conta que São Luís
recebeu o título de capital da Cultura 2009, concorrendo com as cidades de Areia,
na Paraíba, Mariana, em Minas, Montenegro, no Rio Grande do Sul e Senador
Pompeu, no Ceará. Título mais do que merecido pelos artistas e outros
produtores culturais que aqui vivem e realizam seus trabalhos, tanto nos ateliês
como nas ruas. Talvez por este motivo, ou por se tratar de um ano eleitoral, se
procure acelerar as obras de restauro. Providência que, todos sabemos, é comum nas
administrações que não dão prioridade à Cultura.
Continuamos nossa caminhada com Rai.
É uma pena que os principais locais históricos estejam fechados. Passamos em
frente ao Palácio dos Leões, onde fica o governo do Estado, e que se abre à
visitação pública segundas, quartas e sextas-feiras. No dia seguinte fomos
visitá-lo.
Logo depois, Rai nos mostra a
casa onde viveu a mulher mais poderosa do Maranhão: Ana Jansen; e contou um
pouco da vida daquela mulher que era descendente de nobres europeus, mas embora
tenha nascido rica, perdeu tudo e enfrentou uma juventude muito pobre. Foi mãe
solteira, e com muitas dificuldades manteve a mãe e o filho pequeno.
Sua situação financeira melhorou
quando se tornou amante de Izidoro Rodrigues Pereira, o homem mais rico da
província. Não é difícil imaginar o preconceito que aquela mulher enfrentou,
vivendo no meio de uma sociedade machista e preconceituosa como deveria ser a
daquela época não só no Maranhão, mas em todo o país. Assim sendo, Ana Jansen passa a ser o objeto preferido da maledicência
dos moralistas e fofoqueiros da época.
Donana, como era chamada, torna-se uma mulher revoltada e perversa que
maltrata e tortura seus escravos. Ela era difamada principalmente por sua maior
inimiga: dona Rosalina Ribeiro.
Izidoro era casado, mas era ela
que o acompanhava em todas as reuniões e atos políticos. E foi participando
desse mundo do poder, que ela aprendeu a conviver com as artimanhas da
política. Com a morte da mulher, Izidoro assumiu oficialmente a relação com a
Donana. Os dois tiveram seis filhos, e após quinze anos de relacionamento, ele
morreu.
Viúva, Ana aumentou a fortuna da família,
tornou-se rica, independente e poderosa. Era ela a principal liderança política
da cidade. Além de difamada pelas mulheres maranhenses, que não se conformavam com a existência de alguém
tão livre, independente, perversa, principalmente com seus escravos, Donana era
odiada também por seus inimigos políticos, principalmente pelo comendador Meireles,
líder do partido conservador. Sua fama chegou ao palácio de D. Pedro II que
quis conhecê-la; e a partir daí o povo passou a chamá-la de “Rainha do Maranhão”.
Contam os historiadores um
episódio interessante sobre ela: seu grande inimigo Antônio Meireles, para
vingar-se de Donana mandou fabricar na Inglaterra centenas de penicos com o
rosto dela no fundo. Rapidamente os penicos foram todos vendidos. O que o
Antônio Meireles não sabia é que aquele sucesso de vendas se devia à própria
Donana que mandara comprá-los e colocá-los para uso dos escravos.
Um certo dia, Ana Jansen mandou
que os escravos levassem todos os penicos à loja de Antônio Meireles, e jogassem
todo o conteúdo que neles haviam juntado no chão e nas paredes da loja do inimigo. Dessa forma,
o comerciante ficou impedido de receber seus clientes, porque nada conseguia
limpar o mau-cheiro que ficou na loja.
Uma lenda conta que nas noites de
sexta-feira, Donana passeia pela cidade, com um vestido decotado com colares de
diamantes lhe enfeitando o colo, em uma carruagem conduzida por um esqueleto, e
levada por cavalos brancos cujas cabeças são chamas de fogo. Arrastar de
correntes e gemidos dos escravos que ela torturou acompanham essa carruagem, e
quem com ela encontrar receberá de Donana uma vela e por sua alma deverá rezar.
Caso contrário, pela manhã em vez de vela encontrará um osso descarnado.
Nesta semana de 22 a 29 de agosto a cidade
intensificou mais ainda suas atividades culturais com a Semana do Folclore. E
nos chamou a atenção o grande público que cada atividade atrai. Funcionários da
Secretaria de Cultura, todos uniformizados, recebem o público.
A abertura aconteceu no dia 22
com o Cine Popular com a apresentação dos filmes que concorreram à edição do
Refestança deste ano e de 2007. Após a exibição do filme houve o lançamento do
livro Poesias Reunidas de Valdelino
Cécio, na praça que naquela noite foi batizada com o nome do Poeta e, em seguida
uma roda de Choro, com quatro grupos: Pixinguinha, Tira-Teima, Urubu Malandro e
Choro Pungado. Irmã de um bandolinista fui criada ouvindo choro, e me sinto
incapaz de dizer qual daqueles grupos é o
mais talentoso.
Durante a semana houve a apresentação
do Projeto de Reconhecimento do Bumba-meu–Boi como Patrimônio Imaterial
Nacional, o plano de Salvaguarda do
Tambor de Crioula, e a Roda de conversa ”Divino
Maranhão” coordenada pela antropóloga Cláudia Gouveia que falou sobre sua
experiência com a celebração da Festa do Divino no calendário religioso
maranhense, além da exposição “Do Barro às vivências: cultura material e
paisagem cultural dos quilombos de Alcântara”, promovida pelo Iphan.
Essa mostra foi o resultado de
quatro meses de pesquisa de campo e entrevistas que se realizaram em centenas de povoados
remanescentes de quilombos de Alcântara.
A pesquisa visa relacionar o
universo quilombola alcantarense com o matiz indígena que envolve o município. Utensílios
domésticos, instrumentos de trabalho e objetos decorativos ficaram expostos à
visitação pública. O encerramento da Semana se deu com uma apresentação de
grupos de Tambor de Crioula, mas segundo os maranhenses.
No segundo dia de nossa estada fizemos
amizade com três moças: Fátima, Dora e Cirlene. Todas de São Paulo. Agora somos
cinco a percorrer as ruas. Às vezes nos perdemos das outras três, porque
Edilena e eu entramos em todos os ateliês, conversamos com os artistas, fazemos
mil perguntas, faço anotações, tiro fotos. Com isso as outras três nos perdem
de vista.
Fico feliz ao ver mais casarões restaurados
no centro histórico e que outros começam a ser.
Esta cidade constitui um verdadeiro tesouro. Bastaria nos deter na
riqueza dos seus azulejos, e já teríamos
aí motivo para uma pesquisa profunda dos seus motivos, dos seus símbolos,
da sua beleza. Mas não é só isso.
São Luís é muito mais: é a beleza
das suas altas portas e janelas guarnecidas por pedras de cantaria que, dizem
uns, assim se chamam porque ao serem lapidadas produziam um som, que parecia
uma cantaria. Outros dizem que aquele
som seria o produzido pelos carros de bois que as transportavam dos portos até
os locais das construções. A mim, as duas versões satisfazem. O importante é a
música, é o sentimento que me toma ao deslizar as mãos por elas e sentir suas
texturas, ver as ranhuras que abrigam o pó que de tanto tempo já se entranhou
nas frestas, e hoje forma o claro escuro que nos encanta. Pedras que calçam as
ruas por onde tantos passaram, uns alegres, saltitantes, outros tristes,
acabrunhados...Penso em tanta coisa, em tantas pessoas que gostaria de ter ali
comigo, para dividir a felicidade que sinto naquela cidade. A beleza daquele
lugar...
Estávamos com uma programação
para ir a Alcântara no sábado pela manhã. Passeio imperdível. Fiquei toda
eufórica com a proposta, e fui das primeiras a me inscrever. Ao ouvir o guia
dizer que iríamos de catamarã, quis saber do que se tratava, pois a ignorante
aqui que vos escreve, jamais ouvira falar naquela embarcação. Quando soube,
desisti do passeio. Fiquei amedrontada, por isso em cada táxi que tomávamos eu
perguntava ao motorista se já viajara no tal catamarã. Quando eles diziam que
não, eu perguntava por quê. Se eles tinham medo, se era perigoso. Fiz esse tipo
de pesquisa com mais de quinze pessoas na cidade, até que um dia, diante da
gozação de minhas companheiras de viagem, um motorista disse: “vou lhe levar
pra ver um catamarã”. E gentilmente nos levou para ver a tal embarcação.
Sosseguei e confirmei minha ida. Em outra crônica vou contar o que foi isso. Ou
seja, uma das maiores aventuras de minha
vida. Aguardem!
*
Jornalista, professora de Literatura Brasileira e Portuguesa e escritora, autora
de “Eu: primeira pessoa, singular”, obra vencedora do Prêmio Teresa Martin de
Literatura em júri composto por Ignácio de Loyola Brandão, Deonísio da Silva e
José Louzeiro. Militante contra a última ditadura militar no Brasil.
Nenhum comentário:
Postar um comentário