quinta-feira, 18 de setembro de 2014

Vascaína

* Por Marcelo Sguassábia

Na capitania hereditária de Vasco Herculano Machado do Aleijão aconteciam coisas um tanto esdrúxulas. A greve dos sacis, reivindicando fumo de boa procedência para seus cachimbos, talvez seja a ocorrência mais conhecida, pela repercussão alcançada nos pasquins da época. O levante resultou, inclusive, na intervenção da Coroa Portuguesa para aplacar os exaltados ânimos dos Pererês, reunidos aos milhares em ruidosas passeatas sobre uma perna só.

Mas o incidente está longe de ter sido o único a merecer nota nos anais da história. Muito provavelmente, o maior de todos os rebus já registrados naquelas plagas coloniais se deu quando a referida capitania teve finalmente de tornar-se hereditária - por ocasião da
morte de seu donatário, o tal Vasco. A faixa de terra, que se estendia do litoral até a linha de Tordesilhas, era para o herdeiro um pepino maior que a Faixa de Gaza dos dias de hoje.

Financeiramente deficitária e atacada pelos índios caxinauás a cada oito dias, a extensa tripa era um matagal de fora a fora e exalava um odor incessante de carniça pela ausência de urubus na região, abatidos em massa pelo desalmado Vasco nas suas práticas de tiro ao pombo (como os pombos eram difíceis de acertar, Vasco achou por bem trocar de ave para facilitar-lhe a pontaria, daí a opção pelos urubus). Vasco Jr., em resumo, iria herdar um verdadeiro nó cego, o que o levou a abdicar da hereditariedade sobre a capitania. Não havendo outro português que se habilitasse a ficar com a encrenca, Juninho resolveu legar seus milhares de hectares à menos hostil das caxinauás que conhecia, uma tal Cunhapora Ceci, que há tempos lançava sobre ele uns olhares cheios de segundas intenções.

Cunhapora, flagrada após a caça vespertina cheirando lança em sua oca, agradeceu a Vasquinho o fato de lembrar-se do seu nome mas rejeitou a oferta. Entretanto, sugeriu a ele que propusesse a Inhauaterê e seus irmãos um bem fornido carregamento de espelhinhos em troca de serviços vitalícios de capina do território. Pelo menos assim manteria roçados os seus domínios enquanto, com um pouco mais de calma, engenhava uma solução adequada ao seu dilema.

Embora alguns dos irmãos de Inhauaterê demonstrassem sincero interesse na permuta, esta foi formalmente rejeitada pela maioria, que preferiu não trocar a rede pela enxada. Inconsolado e descrente da boa vontade humana, Vasco Jr. não vislumbrava outra saída a não ser repartir a capitania em pequenas sesmarias para cultivo de hortifrutigranjeiros.

Pelo tratado estabelecido, se suas terras não fossem lucrativas após determinado prazo, a Coroa Portuguesa poderia reaver a posse e mandá-lo à forca por justa causa.
Temendo essa possibilidade, Vasco Jr. retornou à mesa de negociações com Inhauaterê e Inhauaterê Mirim, seu filho, para elaborarem o estatuto da Alfamel, a Cooperativa de Produtores de Alfaces e Melões, a ser gerida por trinta mil japoneses dispostos a ganhar a vida a qualquer custo nas capitanias brasileiras. O que os nipônicos de então não imaginavam é que a maleita dizimaria, em apenas 17 meses, quase todos eles, enquanto a praga denominada Mandruvá da Alface faria o mesmo com suas hortas.

Vasquinho faleceu após duas outras tentativas fracassadas de fazer dinheiro com suas terras. E de arrumar um herdeiro para sua Capitania.

* Marcelo Sguassábia é redator publicitário. Blogs: WWW.consoantesreticentes.blogspot.com (Crônicas e Contos) e WWW.letraeme.blogspot.com (portfólio).


Um comentário:

  1. A divisão de terras será para sempre uma discussão inútil. O rio corre para o mar, mas a graça pode ser para todos.

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