segunda-feira, 13 de maio de 2013


A bela adormecida

* Por Daniel Santos


Durante os meses em que minha mãe se recuperava de uma septicemia quase fatal, morei com uma tia que, sem o saber, me revelou, ainda na adolescência, o imenso talento das mulheres para a diplomacia.

Pois essa tia gastava boa parte do salário em produtos de beleza, que, ela dizia, usava para agradar ao marido. Por isso, toda noite, antes de se deitar, demorava-se no banheiro com cremes, óleos e loções de Paris.

Impaciente, o companheiro chamava da cama e ela “já vou, já vou”, mas cuidava-se tanto que, ao ter com ele, encontrava-o, no mais das vezes, adormecido, ressonando frustrações, enquanto ela dormia na santa paz.

Esses desencontros repetiram-se com tal freqüência que, certa noite, agradavelmente perturbado pelo perfume da sua toalete, entendi por que, de fato, demorava tanto a se apresentar: ela o iludia até a chegada do sono!

Na verdade, não o queria como homem, e sim como companheiro que, de preferência, nem a tocasse. Não, nada de toques, de apertos mais intensos. Em vez de intimidades com o marido, preferia manter-se bela.

Entendi, assim, com certa perplexidade que, a par do seu evidente poder de sedução, a beleza também protege quem, ainda hoje, em certos momentos, deixa-se submeter. Mas, seja lá como for, a beleza salva.

* Jornalista carioca. Trabalhou como repórter e redator nas sucursais de "O Estado de São Paulo" e da "Folha de São Paulo", no Rio de Janeiro, além de "O Globo". Publicou "A filha imperfeita" (poesia, 1995, Editora Arte de Ler) e "Pássaros da mesma gaiola" (contos, 2002, Editora Bruxedo). Com o romance "Ma negresse", ganhou da Biblioteca Nacional uma bolsa para obras em fase de conclusão, em 2001.

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