sábado, 18 de maio de 2013


E a ditadura, acabou?

* Por Paulo Reims

Como não recordar de toda aquela agitação, todo o aparato militar nas ruas a nos intimidar? Não faz tanto tempo assim. Teve início em 1964 e foi até 1985. Os aparelhos de rádio à bateria, o único meio de comunicação dos pobres, na época, anunciavam: “Nossa operação prendeu mais um grupo de comunistas”. E a Rádio que ousasse transmitir algo contrário às orientações dos tiranos era fechada sumariamente. A imprensa escrita não chegava ao interior, onde nem energia elétrica havia. Tínhamos que dormir cedo para não gastar muito querosene ou velas. Pela manhã, íamos para a escola, onde uma professora tinha que dar aulas para as crianças da 1ª à 4ª série, numa única sala. Lembro que a professora nos dizia: “Ao encerrar as aulas, vão direto para casa, pois nesse tempo é perigoso ficar por aí. O pessoal do exército está pelas ruas para pegar os comunistas que, por sua vez, querem pegar as crianças”. Não sei se a professora dizia isso por medo ou por ignorância. Os funcionários do governo recebiam ordens e deviam cumprir, mesmo que para isso tivessem que aterrorizar até as crianças.

Infelizmente, na época, a fase de conscientização social estava apenas se iniciando. As reformas sociais iam começar a sair do papel quando os militares, mandados pelos grupos econômicos nacionais e internacionais, e pela Cia, com o respaldo do PIG, que já na época funcionava, derrubaram o governo de João Goulart. Realmente, a imprensa tem o poder de fermentar a massa que, para alguns, deve apenas continuar com as mãos na massa, para aumentar o capital das elites. Não estou exagerando. Basta saber que menos de 20% dos jovens brasileiros chegam à universidade. Não fosse a ditadura, hoje, pelos menos 50 a 60 por cento teria curso superior, e não seria massa de manobra fácil. Não se pode ter uma consciência esclarecida, crítica, sem estudo, leitura, pesquisas comparativas... Enfim, precisamos conhecer a história a partir do ângulo dos que sempre foram apenas mão de obra barata para o capital de poucos e, para isso, é preciso manter a massa na ignorância...

Na 6ª feira passada, dia 10 de maio, aconteceu o depoimento do coronel reformado, Carlos Alberto Brilhante Ustra, na Comissão Nacional da Verdade. Ele foi o comandante do DOI-CODI/SP, entre 1970 e 1974. Chamou-me especial atenção e mexeu com minhas entranhas a reação deste coronel reformado. Ele se portou como se estivesse no comando da comissão e em plena ditadura, falando para mentecaptos. Afirmou categoricamente que a ditadura existiu para garantir a democracia, que ele nunca torturou ninguém, e que não faria acareação com o vereador de São Paulo, Gilberto Natalini, que na época era estudante de medicina, e que foi preso e torturado por este coronel. O cara mentiu, disse o que quis, do jeito que quis e a Comissão ficou quieta. Creio que os membros da comissão tiveram a mesma sensação que eu. Senti-me novamente aquele pré-adolescente sentado naquela carteira rústica da escola isolada sendo admoestado, juntamente com meus colegas, a andarmos ligeiro, em silêncio, indo e voltando da escola. E ainda quando fiz o curso superior, ao terminá-lo, escolhi escrever a minha monografia tendo por tema: “A importância do socialismo no desenvolvimento da sociedade”. Apresentei minha opção ao orientador, e dele ouvi: “Nossa faculdade está em estágio probatório. Se você escrever sobre isto, corremos sério risco de perdermos a licença e, ainda mais, você e eu poderemos ser presos”. Isso é terror, e o coronel vem chamar o vereador de terrorista por ter lutado pela volta da democracia! Ouvir isto em pleno século XXI é, no mínimo, degradante.

Tenho acompanhado um pouco os trabalhos da Comissão Nacional da Verdade, e revivido um pouco do terror que nos inculcaram na ditadura militar. Os trabalhos da comissão precisariam ser mais bem divulgados. A secretaria da comissão poderia fazer uma resenha diária, e esta deveria ser divulgada diariamente pela imprensa, na TV no horário nobre, para que toda a população pudesse tomar conhecimento; afinal, é uma fração importante da nossa história sendo recontada. Evidente que a grande mídia vai gritar, pois o Partido da Imprensa Golpista (PIG) vai encarar como uma afronta às suas falsas verdades veiculadas para manter os incautos na hibernação. A priori, todo o trabalho da comissão somente ficará registrado corretamente na nossa história, pois a ignominiosa lei da anistia não permite punições aos torturadores e assassinos. Porém, algo novo está no ar. A Comissão vai propor, em seu relatório final, que o Brasil faça uma nova interpretação da Lei 6.683, conhecida como Lei da Anistia, de 1979. A Lei Brasileira precisa se adequar aos parâmetros internacionais definidos pela Corte Internacional de Direitos Humanos (CIDH). Há um entendimento de que, em nenhum momento, a lei protege quem cometeu crimes de terrorismo e contra a humanidade. “O que aconteceu no Brasil não foi uma anistia. Existe uma sentença da CIDH que diz que as autoanistias não são aceitáveis”, defendeu o atual coordenador da CNV, Paulo Sérgio Pinheiro, em reunião com os demais membros da comissão.

O Supremo Tribunal Federal precisa rever sua posição que considerou que a famigerada Lei da Anistia engloba tudo. O que motivou tal decisão? E o coronel Ustra, se não torturou e não assassinou, não precisa temer nada. Escutei você dizer: “Em nome Deus, não torturei e nem matei”. Para quem vive o ateísmo prático, é muito fácil jurar em nome de Deus.

Numa olhada rápida concluímos que a ditadura não acabou. Ela continua viva e amedrontando muita gente, neste enorme país, e pelo mundo afora. É a ditadura da grande mídia, do poder econômico, dos governos que não levam em conta as reais necessidades do povo, que não debatem as questões antes das decisões, do legislativo que legisla em causa própria, das máfias, das religiões que pregam um deus vingativo, quando deveriam pregar Deus Amor e, por isso, libertador de todas as opressões. É a ditadura no Judiciário que leva em conta vários pesos e medidas obscuras.

No mês de abril aconteceu o encontro do presidente do STF com os representantes dos juízes. Não pensei que em pleno terceiro milênio da era cristã tivesse que ouvir isto: “Não esqueça que você está diante do presidente da suprema corte, e só me dirija a palavra quando eu lhe pedir”.

Só não existe ditadura onde existe diálogo fraterno e respeitoso; onde as questões são debatidas de forma civilizada, antes das decisões serem tomadas, e que sejam sempre para o bem comum; enfim, onde a dignidade de todas as pessoas é levada a sério.

Na cidade onde resido, Brusque, existe, por parte do governo municipal, o gesto verdadeiramente democrático de chamar, anualmente, cada bairro para uma assembleia, a fim de escolher, debater e eleger as prioridades para o ano seguinte. Todas as pessoas ficam sabendo, pois o carro de som sai anunciando e convidando as pessoas a participarem. Belo exemplo!

* Jornalista

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