Imagens que não existiriam sem Cau Gomez
* Por Mara Narciso
Meu primeiro contato com o pintor e cartunista Cau Gomez, nascido
Cláudio Antônio Gomes, foi através de um convite virtual. Nágila Almeida e
Rosângela Alves convidavam, através de Mosaico, empresa de resultados, para um
vernissage do artista na Galeria Márcio Leite. A capa do convite virtual era um
quadro coalhado de garrafas amarelas, bem espremidas em cena, e cada uma tinha
uma personalidade, não sendo uma garrafa qualquer. Na hora da festa, o primeiro
quadro que vejo é justo o do convite. Está na entrada, e ocasiona o que se
espera de uma obra desse tipo: parece gritar. É viva e fala alto. Tem garrafa
homem, garrafa mulher nua, garrafa boca aberta, garrafas arrumadas e caídas. O
artista não usa os pinceis com suavidade, mas com a força de quem quer
exorcizar alguma entidade de dentro do corpo. Seu traço forte consegue mexer,
agitar, atordoar. E por pouco não deflagra uma guerra.
O amarelo está presente em quase todos os 14 quadros pintados para a
mostra de Montes Claros. Aos meus olhos destaca-se dos demais o quadro Sarau da
Rural. São duas metades. Na de cima, sobre um amarelo vibrante um óvulo azul,
depois um feto em formação e depois formado, vira criança que vira adulto com
um sax na boca, de claro apelo fálico. Na metade de baixo uma majestosa Rural,
daquele azul inesquecível, ladeada por duas caras. Amarelas. Coisa para paixão.
Cau Gomez falou que era uma homenagem a um amigo que tinha um carro de som que
era uma Rural. De nome Rui, era chamado de Ruiral. Hoje, como tem uma Land
Rover, é chamado de Ruiover. Todos melhoraram de vida.
Há uma mão engraçada na qual cada dedo é uma pessoa; um relógio em que
os ponteiros são um homem que prova não estar bêbado, pois, de copo na mão, faz
um quatro com as pernas, sendo o outro ponteiro uma garrafa de cachaça. Com a
sua origem no cartum, diverte-se fazendo piada na tela grande, sugerindo que
seu Macunaíma, o herói sem caráter, cujos dentes branquíssimos são o nome do
personagem, possa ser um auto-retrato. E com a camisa da Seleção Brasileira de
Futebol. Há dois palhaços, sendo um deles quase abstrato, mas deixando-se
sugerir pela boca branca e pelo nariz vermelho.
A tela chamada “Primeiro de maio” traz dois operários de capacete e na
frente deles, duas engrenagens que remetem ao filme “Tempos Modernos” de
Chaplin. Cau Gomez, mineiro de Belo Horizonte, disse que “figuras icônicas não
são buscadas, mas surgem na obra e não há como fugir delas”.
Algo irado em certos momentos, seu traço rascante nos foi trazido por
Márcio Leite, um anfitrião que abre a sua galeria para abraçar a grande arte. E
nos surpreender. Quem viu o sanfoneiro-cangaceiro, com cara de mau e cercado de
inesperadas bandeirolas e “boca letra a” achou a criação única e entendeu que
aquelas imagens jamais existiriam, caso não tivessem saído da imaginação do
homem de rastafári direto para as telas. Mora na Bahia, e tem tudo para ser
soteropolitano, e é, ainda que seja como cidadão honorário, mas nasceu de
verdade foi nas proximidades das minas de ouro. Talvez, também por isso, a sua
arte brilhe dessa maneira. E desconcerte.
As suas bandeirolas, que lembram as de Alfredo Volpi, atenuam a
ambientação e aplacam o ar sombrio das cores vivas. Mesmo vivas. Afirmando ter
traço livre, aproxima-se do abstrato, sem, contudo, desvincular-se em
definitivo da figura humana. Há momentos de crítica social, além dos já citados
toques de humor pesado. A sua arte livre fala das situações opressoras das
grandes cidades, nas quais janelas apertadas sugerem prisão e falta de espaço,
dando peso à condição dos civilizados oprimidos pelas pinceladas em preto, e
pelas garrafas presas na prateleira. Janelas, portas e garrafas dão seu recado
urbano, que o levaram a ganhar prêmios nacionais e internacionais. Diz que
estudou e segue a Escola Guignard, de Belo Horizonte, e numa fala rápida mostra
modéstia e simpatia.
Ver arte dá prazer sem precisar entender de arte, e nem saber daquela
arte específica. Sofisticação é desnecessária para apreciar. Pessoas comuns
merecem consumir o produto (santa heresia!) sem se perturbar com definições
técnicas que tentam amarrar artistas num cercado. A arte de Cau Gomez no
cartum, charges, caricaturas, ilustrações gráficas, vinhetas, quadrinhos,
pinturas em tela, e tudo que lida com imagem pode aceitar definições, mas não a
tutela de um limite.
*Médica endocrinologista, jornalista
profissional, membro da Academia Feminina de Letras e do Instituto Histórico e
Geográfico, ambos de Montes Claros e autora do livro “Segurando a
Hiperatividade”
Bela resenha, Mara. Parabéns pelo talento em nos reportar a exposição e também para Cau Gomez. Abraços.
ResponderExcluirAgradecida, Marcelo, pela passagem e comentário. Sou uma apreciadora da arte, e bem corajosa, posso assim dizer, por externar o que sinto ao ver uma obra de arte. Muito obrigada!
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