quarta-feira, 29 de maio de 2013

Imagens que não existiriam sem Cau Gomez

* Por Mara Narciso

Meu primeiro contato com o pintor e cartunista Cau Gomez, nascido Cláudio Antônio Gomes, foi através de um convite virtual. Nágila Almeida e Rosângela Alves convidavam, através de Mosaico, empresa de resultados, para um vernissage do artista na Galeria Márcio Leite. A capa do convite virtual era um quadro coalhado de garrafas amarelas, bem espremidas em cena, e cada uma tinha uma personalidade, não sendo uma garrafa qualquer. Na hora da festa, o primeiro quadro que vejo é justo o do convite. Está na entrada, e ocasiona o que se espera de uma obra desse tipo: parece gritar. É viva e fala alto. Tem garrafa homem, garrafa mulher nua, garrafa boca aberta, garrafas arrumadas e caídas. O artista não usa os pinceis com suavidade, mas com a força de quem quer exorcizar alguma entidade de dentro do corpo. Seu traço forte consegue mexer, agitar, atordoar. E por pouco não deflagra uma guerra.

O amarelo está presente em quase todos os 14 quadros pintados para a mostra de Montes Claros. Aos meus olhos destaca-se dos demais o quadro Sarau da Rural. São duas metades. Na de cima, sobre um amarelo vibrante um óvulo azul, depois um feto em formação e depois formado, vira criança que vira adulto com um sax na boca, de claro apelo fálico. Na metade de baixo uma majestosa Rural, daquele azul inesquecível, ladeada por duas caras. Amarelas. Coisa para paixão. Cau Gomez falou que era uma homenagem a um amigo que tinha um carro de som que era uma Rural. De nome Rui, era chamado de Ruiral. Hoje, como tem uma Land Rover, é chamado de Ruiover. Todos melhoraram de vida.

Há uma mão engraçada na qual cada dedo é uma pessoa; um relógio em que os ponteiros são um homem que prova não estar bêbado, pois, de copo na mão, faz um quatro com as pernas, sendo o outro ponteiro uma garrafa de cachaça. Com a sua origem no cartum, diverte-se fazendo piada na tela grande, sugerindo que seu Macunaíma, o herói sem caráter, cujos dentes branquíssimos são o nome do personagem, possa ser um auto-retrato. E com a camisa da Seleção Brasileira de Futebol. Há dois palhaços, sendo um deles quase abstrato, mas deixando-se sugerir pela boca branca e pelo nariz vermelho.

A tela chamada “Primeiro de maio” traz dois operários de capacete e na frente deles, duas engrenagens que remetem ao filme “Tempos Modernos” de Chaplin. Cau Gomez, mineiro de Belo Horizonte, disse que “figuras icônicas não são buscadas, mas surgem na obra e não há como fugir delas”.

Algo irado em certos momentos, seu traço rascante nos foi trazido por Márcio Leite, um anfitrião que abre a sua galeria para abraçar a grande arte. E nos surpreender. Quem viu o sanfoneiro-cangaceiro, com cara de mau e cercado de inesperadas bandeirolas e “boca letra a” achou a criação única e entendeu que aquelas imagens jamais existiriam, caso não tivessem saído da imaginação do homem de rastafári direto para as telas. Mora na Bahia, e tem tudo para ser soteropolitano, e é, ainda que seja como cidadão honorário, mas nasceu de verdade foi nas proximidades das minas de ouro. Talvez, também por isso, a sua arte brilhe dessa maneira. E desconcerte.

As suas bandeirolas, que lembram as de Alfredo Volpi, atenuam a ambientação e aplacam o ar sombrio das cores vivas. Mesmo vivas. Afirmando ter traço livre, aproxima-se do abstrato, sem, contudo, desvincular-se em definitivo da figura humana. Há momentos de crítica social, além dos já citados toques de humor pesado. A sua arte livre fala das situações opressoras das grandes cidades, nas quais janelas apertadas sugerem prisão e falta de espaço, dando peso à condição dos civilizados oprimidos pelas pinceladas em preto, e pelas garrafas presas na prateleira. Janelas, portas e garrafas dão seu recado urbano, que o levaram a ganhar prêmios nacionais e internacionais. Diz que estudou e segue a Escola Guignard, de Belo Horizonte, e numa fala rápida mostra modéstia e simpatia.

Ver arte dá prazer sem precisar entender de arte, e nem saber daquela arte específica. Sofisticação é desnecessária para apreciar. Pessoas comuns merecem consumir o produto (santa heresia!) sem se perturbar com definições técnicas que tentam amarrar artistas num cercado. A arte de Cau Gomez no cartum, charges, caricaturas, ilustrações gráficas, vinhetas, quadrinhos, pinturas em tela, e tudo que lida com imagem pode aceitar definições, mas não a tutela de um limite.

*Médica endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia Feminina de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico, ambos de Montes Claros e autora do livro “Segurando a Hiperatividade”   


2 comentários:

  1. Bela resenha, Mara. Parabéns pelo talento em nos reportar a exposição e também para Cau Gomez. Abraços.

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    1. Agradecida, Marcelo, pela passagem e comentário. Sou uma apreciadora da arte, e bem corajosa, posso assim dizer, por externar o que sinto ao ver uma obra de arte. Muito obrigada!

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