domingo, 12 de junho de 2011




O riso


* Por Rubem Alves

Alma não come pão. Alma come beleza. O pão engorda, faz o corpo ficar pesado. A beleza, ao contrário, faz a agente ficar cada vez mais leve. Não é raro que os comedores de beleza se tornem criaturas aladas e desapareçam no azul do céu, onde moram os deuses, os anjos e os pássaros. A beleza é coisa da leveza.
Há dois tipos de beleza.
O primeiro é a beleza que os deuses oferecem aos homens como dádiva. Ela cai dos céus, à semelhança do maná. A segunda é a beleza que os homens oferecem aos deuses como dádiva. Ela sobe da terra aos céus, como fumaça ou bolhas de sabão.
Conhece-se a beleza dádiva dos deuses por aquilo que ela produz na alma dos homens. Quem é possuído por ela entra em êxtase: cessa o riso, cessa o choro, o pensamento pára, a fala emudece. É mística. A alma está tomada pela felicidade da tranqüilidade absoluta. Era assim que se sentia o Criador ao contemplar, ao final de cada dia de trabalho, o resultado da sua obra: “Está muito bom! Do jeito como deveria ser! Nada há a ser modificado! Amém!”.
A beleza dos deuses aparece nos corais de Bach, nas telas de Turner e Constable, nos escritos poéticos de Bachelard. São sacramentos de bem-aventurança celestial.
A beleza que os homens oferecem aos deuses como dádiva é de dois tipos.
A primeira é a beleza trágica, que faz chorar. Exemplos de beleza trágica: a Sonata ao Luar, de Beethoven; a tela Corvos Sobre um Campo de Trigo, de Van Gogh; os Pobres na Praia, de Picasso; a canção Construção, do Chico.
A beleza trágica nasceu depois que o homem perdeu o paraíso. No paraíso não havia beleza trágica porque, para existir, ela precisa de lágrimas. Mas, como é sabido, paraíso é precisamente o lugar onde não há lágrimas. A beleza trágica nasce das entranhas dos que sofrem, como uma forma de oração.
Mas no paraíso havia um outro tipo de beleza. Era diferente da beleza divina, pois não produzia êxtases místicos de tranqüilidade. Era diferente também da beleza trágica, pois não fazia chorar. A beleza paradisíaca fazia rir.
Os especialistas em beleza acham impróprio que se dê o nome de beleza a algo que produz o riso. É compreensível. Havendo perdido a memória do paraíso, esqueceram-se de que a vocação original da beleza é a produção da alegria. A beleza paradisíaca é o fruto que pendia da árvore da vida. Bastava uma mordida para que o corpo se transfigurasse pelo riso. É para o riso que Deus nos criou. Adão e Eva, tolos, preferiram morder o fruto da árvore da ciência – e perderam o paraíso. Ficaram tristes.
Jacob Boehme, místico que viveu no século XVI, disse que o paraíso foi perdido no exato momento em que os homens abandonaram a leveza brincalhona das crianças e optaram pela gravidade séria dos adultos. O paraíso é o lugar onde se sabe que a vida é uma brincadeira divina. Deus criou os homens para ter companheiros de brincadeira. Lá toda a beleza era alegre e risonha. A memória dessa identidade original entre a beleza e o brinquedo está preservada no inglês e no alemão: as palavras play, em inglês, e spielen, em alemão, tanto podem se referir ao ato de tocar a Appassionata quanto ao ato de soprar bolhas de sabão... A beleza paradisíaca é aquela que brota do corpo das crianças. E as crianças sabem que o propósito da vida é o brinquedo.
Mozart era um especialista em beleza paradisíaca. Brincava com os sons. A sua Eine kleine Nachtmusik (Pequena serenata) é um delicioso brinquedo. O teólogo protestante K. Barth, para quem teologia era também brinquedo, dizia que os anjos, diante de Deus todo-poderoso, tocavam Bach. Mas, entre eles, tocavam Mozart... Injustiça para com Bach. É difícil encontrar peça mais brinquedo de criança que a sua Badinerie, para flauta e orquestra, da suíte orquestral n 2. E Miró? Não conheço nada mais moleque que seus quadros. E há Mário Quintana, poeta que, mesmo velho, continuava criança. E aquela brincadeira musical do Chico – eu rio toda vez que a ouço –, toda ela em rimas em “im”, pelo nariz, “um anjo safado, o chato do querubim”, que decretou que estava predestinado “a ser todo ruim”. E a brincadeira vai de “im” em “im”: chinfrim, bandolim, Quixeramobim, clarim, assim, até o fim...
Alberto Caeiro, uma criança especialista em coisas leves, escreveu essa delícia:



“As bolas de sabão que esta criança
Se entretém a largar de uma palhinha
São translucidamente uma filosofia toda.
Claras, inúteis e passageiras como a Natureza,
Amigas dos olhos como as coisas.
São aquilo que são
Com uma precisão redondinha e aérea,
E ninguém, nem mesmo a criança que as deixa,
Pretende que elas são mais do que parecem ser...”

Tudo o que o Caeiro toca fica assim, redondinho e leve e é impossível não rir – e a gente se descobre outra vez criança.
O Riobaldo era bom teólogo. Conhecia por dentro o coração de Deus. E foi isso que ele disse: “O que Deus quer, é ver a gente aprendendo a ser capaz de ficar alegre a mais, no meio da alegria, e inda mais alegre ainda no meio da tristeza!”

* Rubem Alves é escritor, teólogo e educador.

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