sábado, 4 de junho de 2011







Claro como a noite

* Por Sérgio Vilas Boas

Com Cláudia

A instabilidade juvenil roubou de mim as chances de um relacionamento duradouro com minha primeira mulher. Naquele casamento de dois anos, o que mais compartilhamos foi a interrogação sobre “o pai”. Tanto Edmundo, pai dela, quanto Milton, o meu, eram muito estranhos; os testemunhos sobre ambos, desencontrados; os registros, suspeitos; nenhuma voz audível era capaz de reconstitui-los. Precariamente, materializávamos os dois como seres solitários, ausentes, irrelevantes, especiosos.

- Não vai engavetar esse livro, vai? (Cláudia, minha atual mulher, a quem flagrei com duas lágrimas escorridas). É ótimo!
- Não consigo livrar esses dois da acidentalidade. Acho que a gaveta será um refúgio merecido. Sujeitos insondáveis, estes, Cláudia. Devem ter enxergado o mundo por aqueles círculos de fumaça azulada, produzidos depois de longas inalações com seus cigarros vagabundos. Um silêncio arrepiante tomara conta deles.
- Talvez os dois não tivessem mesmo nada a dizer. Qualquer um tem o direito de querer simplesmente observar a passagem da vida, e mais nada.
- A única chance de saber se fizeram essa opção seria arranjando coragem pra perguntar a eles. Agora, além de tudo, é tarde demais.
- Deixa pra lá. Comece a experimentar uma vida sem sombras. (Quando devidamente sensibilizada, minha atual mulher é surpreendente). Chega o momento em que temos de nos guiar pela ação.
- Fracassei de novo, Cláudia.
- Você se apequena diante dos “vencedores” e se revolta contra os “perdedores”. Você não escreveu sobre “um jovem autor marginal que assume sua precariedade narrativa por meio de dois protagonistas monótonos...”. Você escreveu sobre dois sujeitos palpáveis.
- Como se não bastasse tudo, tem isso: um esquema desgastado. Não diga mais nada, por favor, Cláudia. Sou patético.
- Nossos pais são iguais a milhões. E daí?

Com Gerald

- Daí nada mais aborrecido do que autor angustiado aferrado à idéia de um foro post-mortem. (Gerald, o “grande resenhista”, estala os dedos; sua maneira de chamar o garçom). Estou farto dessas bobagens pós-modernas.
- Gerald, quer saber? Você é um opinante compulsivo. Uma imagem sem constância, um farsante. (Há muito eu queria dizer-lhe isto).
- Ei, ei, cuidado com o que diz. (O garçom aguarda de pé, bloco e caneta na mão; Gerald raramente se enfurece).
- Pós-moderno é ser personagem de si mesmo, como você. (Levanto; o garçom, por enquanto, nos observa.) Um resenhista que não lê os livros que resenha... Fazedor de sinopses!
- Vou te estraçalhar nos jornais, idiota. (Gerald soca a mesa).
- Foda-se. (Caio fora).
- Chutador de cachorro morto! (O garçom também dá o fora, rapidinho).
- Logomaníaco!!

Com Osvaldo

No fundo, sinto-me como se estivesse mesmo tentando, a alfinetadas, despertar dois indivíduos do coma. Sou aquele velocista que descobre, depois de alucinada corrida contra o tempo, que o treinador se esquecera de ligar o cronômetro. O conhecimento do outro é uma aventura. Passei meses enfrentando a solidão e a introversão e o que obtenho?
- Cinzas, cinzas... (Osvaldo diz, abrindo o fecho eclair).
- Vou começar outro livro, Osvaldo. Esse memorialístico, não deu.
- De maneira nenhuma. A compreensão que tenho desse tal Edmundo e desse tal Milton é mais precisa que minha experiência direta de... (Osvaldo mira o mictório e urina sonoramente; solta a respiração). ...Existir. Os dois são claros como a noite, ao contrário de você.

Com Vera

Um erro – aparentemente mero acaso – revela um mundo insuspeito. Entrei numa relação com forças pouco compreensíveis, ondulações na superfície da vida, produzidas por nascentes inesperadas. E essas nascentes podem ser muito profundas – tão profundas quanto a alma. Todo indivíduo (os de ficção também) atende a um chamado. Mas há os chamados que não obtêm resposta. Por recusa, atenção desviada, aprisionamento a rotinas, desgostos, sobrecargas.
- Por que nunca me falou sobre esse teu estranho pai? (Vera; e ela acaricia meu púbis).
- Porque, até há pouco, era como se ele estivesse ausente de mim. Acontecia de eu repetir, repetir, repetir o nome dele em voz alta pra mim mesmo mas a palavra se desgastava rápido e a fisionomia correspondente não me acudia.
- Para Edmundo e, pelo que você está me contando, para seu pai também, a imprevidência era mais que um ritual. Era defesa deles contra o futuro. (Ela salta sobre mim, voraz).

Com Ícaro

Mesmo sob pressão, lidando com incógnitas, ofereci o rosto aos tapas. A diferença entre um gênio e um artesão é tão grande quanto a que há entre um homem que sabe como é feito um relógio e outro que sabe dizer as horas olhando o mostrador. “A única sabedoria que podes almejar adquirir é a humildade”, diria T.S.Eliot. Quero adormecer acreditando que sou aceitável. Tique-taque, tique-taque.
- Na pior das hipóteses, você resistiu aos apelos da ficção histórica. Parabéns. Ficção histórica é um pé no saco.
- Cuidado, cuidado! (Atrapalhado como sempre, Ícaro quase arrebenta o carro no meio-fio).
- Sabe o que me intriga? (Nenhum perigo o assusta).
- O quê?
- As projeções do mundo íntimo dos autores. Daria tudo para poder, em cada livro, distinguir a cópia e a invenção; as confissões íntimas do autor e suas distorções propositais; o pai, o(a) filho(a), o espírito, o céu, o inferno interior de cada um.
- Não me preocupo com isso.
- E quanto àquela pergunta que lhe fiz páginas atrás. (Ele recorre à sua maldita memória límpida).
- Qual? (Finjo não saber).
- Sobre usar personagens secundários como interlocutores de sua consciência, pra suprir sua inconsistência.
- ...
- Foi uma saída brilhante, não?
- Não sei.
- Não sabe? Por que diabos me deu essa porcaria de livro seu pra eu ler, então? Suportei toda aquela sua fabulação tortuosa pra nada?
- Ora, francamente, Ícaro.
- De jeito nenhum. Você vai mexer no livro, sim. É uma ordem.
No centro da vertigem, trânsito parado, distingo uma voz em meu encalço, que repete: “Esquece. Esquece essa ‘coisa’ de escrever”.

* Jornalista, escritor e professor. Editor do portal TextoVivo Narrativas da Vida Real (www.textovivo.com.br); vice-presidente da Academia Brasileira de Jornalismo Literário (ABJL). Autor de “Os Estrangeiros do Trem N” (1997), “Biografias & Biógrafos” (2002) e “Perfis” (2003), entre outros. E-mail: svilasboas@textovivo.com.br.

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