sexta-feira, 10 de junho de 2011



Ao sabor das aparências

As aparências enganam”. Essa expressão, muito comum e popular, nós ouvimos amiúde, principalmente para explicar, ou justificar, determinados equívocos que cometemos. Claro que não devemos tomar a afirmação rigorosamente ao pé da letra, como se fosse um dogma infalível. Ou seja, de que tudo o que aparenta ser alguma coisa de fato não o é. Às vezes, não é mesmo. Mas há exceções. E, no caso, talvez se constituam até em regras, sabe-se lá.

Depende, também, de a qual aparência nos referimos, se à física, ou se à moral ou comportamental. Ambas podem enganar, dependendo das circunstâncias. Um exemplo? Não raro cruzamos nosso olhar com alguma mulher aparentemente belíssima, bem vestida, maquiada com perícia e bom gosto, com porte ereto e nobre, que nos impressiona e até nos desperta desejo, quando não avassaladora paixão. Todavia, essa mesma “diva” pode ser um, baita engano, completamente diferente, se a virmos da forma que veio ao mundo, nua e, portanto, desprovida dos elegantes trajes e dos adereços complementares que nos davam a impressão de uma beleza sem mácula e sem senões.

Poderia citar dezenas, centenas, quiçá milhares de exemplos em que as aparências são enganadoras. O que não se pode, sob pena se enganar ainda muito mais, é generalizar. Em boa parte das vezes, o que aparenta ser, de fato é. Quando se toca no assunto, cita-se, via de regra, como exemplo de engano que as aparências propiciam as miragens. Pensa-se nelas como imagens que enganam os sentidos, ou pelo menos, um deles: o da visão, obviamente. Os leigos atribuem esse engano de interpretação a um delírio de quem as vê, ou seja, a eventual desarranjo mental. Estão equivocados. Trata-se de fenômeno óptico, rigorosamente físico, com explicação, portanto, racional e científica.

O vulgo acha que miragens aparecem, somente, quando as pessoas tentam atravessar algum deserto. Atribuem-nas a um estado de exaustão e à sede extrema de quem as vê. Pensa-se, de imediato, no surgimento de oásis verdejantes, com lagos de águas cristalinas, em meio ao areal e que desaparecem, ou mudam de lugar, tão logo o desditoso visionário chega próximo, para o seu desespero. Isso acontece, “também”, dessa maneira. Mas... não somente assim.

Recorro à enciclopédia eletrônica Wikipédia para uma explicação racional desse fenômeno, que, insisto, nada tem a ver com delírio. Diz: “Miragem, ou espelhismo é um fenômeno óptico muito comum em dias ensolarados, especialmente sobre rodovias, em paisagens desérticas, ou também em alto mar. Trata-se de uma imagem causada pelo desvio da luz refletida pelo objeto, ou seja, é um fenômeno físico real e não apenas uma ilusão de óptica”. E não foi o que afirmei?! Delírio? Uma ova!!

Tragamos, porém, o assunto para a nossa seara, o nosso campo de interesse, o das artes (e, claro, da literatura). O artista, sobretudo o escritor, como qualquer ser humano normal, com um mínimo de raciocínio, aspira à eternidade, mesmo tendo ciência da inutilidade dessa aspiração. Claro que tem consciência da impossibilidade física de chegar a ela. Busca-a, porém, através da sua obra. Se conseguirá ou não alcançar seu ousado objetivo, nunca saberá. Para ter sucesso depende de circunstâncias várias que lhe fogem por completo ao controle. Não depende, sequer, da qualidade do que produziu.

Inúmeras manifestações artísticas perderam-se para sempre, ao longo do tempo e da história, em decorrência de guerras, convulsões sociais, catástrofes naturais etc. Quanta coisa espetacular e original não se perdeu, por exemplo, no incêndio da Biblioteca de Alexandria, no Egito?! Ou na destruição da de Nínive?! Ou por causas várias, nos mais variados tempos e lugares?!

A obra de arte, objetivamente, não é eterna. Eterno é o dom artístico, a necessidade do homem de interpretar o que é, sente, faz e tudo o que o rodeia. É esse talento, que se manifesta das formas mais variáveis (literatura, pintura, música etc.) que confere ao artista uma espécie de “miragem de eternidade”. Ou seja, ela existe (tanto que a vislumbramos), mas não exatamente como a “imagem” dela nos sugere.

Essa nossa visão pode vir a se concretizar na sua forma verdadeira? Pode! Mas o que o artista produziu pode, também, se perder para sempre e não deixar o menor vestígio em questão de parcos anos ou quiçá até de dias ou horas. O escritor Gaëtan Picon – autor, entre outros livros, de “O escritor e sua sombra” – escreveu a respeito: “A obra não é eterna, mas a continuidade da criação artística, que a submete ao jogo das revivescências e das metamorfoses, é como uma miragem de eternidade”. E não é?!

Quanto à questão das aparências, afirmo que, quem se deixa levar apenas por elas, não raro comete equívocos que às vezes nem têm remédio. Nem sempre o que parece de fato é o que aparenta. E isso vale tanto para o aspecto material do mundo, quanto para o lado espiritual das pessoas.

Hermann Hesse coloca, na boca de um dos seus personagens, esta verdade, que contradiz as aparências: “O macio é mais forte do que o duro. A água mais forte do que a rocha. O amor mais forte que a violência”. E essa força maior, dos elementos citados, não é apenas figura de linguagem, mas pura realidade.

Analisemos, contudo: o macio verga, mas não quebra, ao contrário do que é duro, que se rompe facilmente. A água é a que gera boa parte da energia elétrica que se consome mundo afora (notadamente no Brasil), e não a rocha. Já a violência, destrói, não raro, não apenas a vítima dela, mas também o seu agente (a toda ação corresponde uma reação). O amor, porém, redime a ambos. Por isso, não nos deixemos levar, jamais, por meras aparências. Elas podem nos enganar demais. Ou não, conforme o caso.

Boa leitura.

O Editor.

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Um comentário:

  1. A representação teatral é uma prova de que pode-se aparentar bem ser o que não somos. Outras vezes ocorre o oposto: gostaríamos de ser outra coisa, mas aparentamos ser exatamente o que a nossa verdade é. No final o jogo continua, como sempre.

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